Novo da RCA livro traz reflexões sobre os protocolos de consulta em quatro países

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Experiências no Brasil, Belize, Canadá e Colômbia dão subsídios à análise dos avanços na criação e implementação dos documentos, cruciais a povos indígenas e tribais

Texto: Thaís Herrero| 18 de março de 2022

Desde 2014, povos indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais têm construído seus Protocolos Autônomos, que são hoje cruciais para que se coloquem como agentes na defesa de seus direitos sobre decisões de governos e empresas que afetam diretamente seus modos de vida e territórios.

É sobre isso e sobre as reflexões, desafios e lições relacionados à elaboração e implementação dos protocolos que trata o novo livro da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), chamado Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento: um olhar sobre o Brasil, Belize, Canadá e Colômbia”.

A publicação reúne exemplos dos quatro países e foi elaborada a partir de pesquisa bibliográfica e documental de Priscylla Joca, Biviany Rojas Garzón, Liana Lima da Silva, Rodrigo Magalhães de Oliveira e Luis Donisete Benzi Grupioni. No total, foram analisados 23 protocolos do Brasil, 7 do Canadá, 5 da Colômbia e 1 de Belize.

Capa do novo livro da RCA, Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento: um olhar sobre o Brasil, Belize, Canadá e Colômbia

Os protocolos são uma manifestação da autodeterminação dos povos, que sistematizam normas, regras, princípios e procedimentos relacionados ao modo como cada um considera adequada, oportuna, honesta e respeitosa a realização da consulta por parte de empresas e governos, até a obtenção de seu consentimento.

Os quatro países foram escolhidos devido ao número de protocolos, a diversidade de sistemas jurídicos, de normas e grau de implementação do direito à consulta e ao consentimento livre, prévio e informado. Além disso, esses países estão localizados no Norte e no Sul globais e possuem contextos sociais, políticos e econômicos diferentes, permitindo a reflexão sobre a produção e implementação dos protocolos em distintas realidades geopolíticas.

No Brasil, foram os povos Wajãpi, no Amapá, e Munduruku, no Pará, que iniciaram a construção dos seus Protocolos Autônomos, sendo seguidos por uma série de iniciativas de  outros povos indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais. Até hoje, contabilizamos cerca de 60 Protocolos Autônomos de povos e comunidades tradicionais em nosso país. 

“Nós resolvemos fazer este documento porque muitas vezes vemos que o governo quer fazer coisas para os Wajãpi, mas não pergunta para nós o que é que estamos precisando e querendo. Outras vezes o governo faz coisas no entorno da Terra Wajãpi que afetam nossos direitos, mas também não pergunta nossa opinião. (…) Nós achamos que o governo deve escutar nossas preocupações, ouvindo nossas prioridades e nossas opiniões antes de fazer o seu planejamento. Não achamos bom quando o governo chega com projetos prontos para nós, com dinheiro para gastar em coisas que não são nossas prioridades.”
Trecho do Protocolo de Consulta e Consentimento Wajãpi, de 2014.

Se de um lado vemos os esforços para a implementação dos acordos, por outro, também vivenciamos um período de retrocessos nos direitos socioambientais e ataques aos direitos constitucionais desses povos. “Diante desse cenário, nada favorável aos direitos humanos, os protocolos surgem justamente como um movimento dos próprios povos que reivindicam respeito a suas normas e regras internas e sua organização social própria”, diz Luis Donisete Grupioni, secretário executivo da RCA e coordenador executivo do Instituto Iepé e um dos autores do livro. 

“Eles passam a apresentar ao Estado um instrumento jurídico que reforça a re-existência nos seus territórios. É uma forma de reagir à invisibilidade política e jurídica que recai sobre os povos indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais. Tal como tem sido elaborados, os protocolos são uma manifestação de boa fé destes povos para com o Estado, propondo uma caminho efetivo para o diálogo intercultural, necessário quando o Estado pretende realizar algum empreendimento em seus territórios, além de um exercício importante de autodeterminação e autonomia política”, completa.  

Convenção 169 sob a mira dos retrocessos 

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais é o tratado de maior importância para esses povos por romper e superar o paradigma assimilacionista até então vigente. Ela consolida os direitos coletivos de autodeterminação e autorreconhecimento, direitos territoriais, direitos de participação e direito à consulta e ao consentimento livre, prévio e informado. 

Ainda assim, a atual corrente de retrocessos, não deixou a Convenção 169 de fora. Em 2021, um Projeto de Decreto Legislativo (PDL 177/2021), na contramão dos compromissos internacionais que o país assumiu, ameaçou denunciar a Convenção 169. Esse livro pode, no entanto, jogar luz à importância de se estabelecer e implementar processos de consulta, assim como efetivar o compromisso do Estado brasileiro em  consultar os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais quando medidas administrativas possam impactar seus territórios e seus direitos. 

>>Leia mais: Em busca do bem-viver: como os indígenas estão fazendo seus planos de gestão territorial

No livro, os autores analisam as propostas de regulamentação do direito à consulta no Brasil e mostram como os protocolos de consulta são uma alternativa eficaz à uma regulamentação restritiva, evidenciando que o direito à consulta, como direito fundamental, é autoaplicável.

Capa dos protocolos de consulta citados no livro Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento: um olhar sobre o Brasil, Belize, Canadá e Colômbia

Ferramenta para novos protocolos

Outro objetivo da publicação é fornecer elementos e subsídios para povos e comunidades interessados em elaborar seus Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento no Brasil e para organizações que possam assessorá-los nesse processo. Também oferece informações aos países e interessados em demandar processos de consulta e consentimento livre, prévio e informado junto a povos indígenas e tribais de maneira adequada, oportuna, respeitosa, honesta e de boa-fé. 

“Este livro nos leva a refletir que a elaboração dos protocolos de consulta se constitui em processos ricos de diálogos, negociações e aprendizagens internas realizados pelos povos e comunidades  que decidem desenvolver um protocolo autônomo”, afirma Priscylla Joca, que também escreveu no livro e é doutoranda em Direito na Universidade de Montreal (Canadá).

Pryscilla destaca que, durante a elaboração dos protocolos, povos e comunidades se apropriam do conteúdo do direito à consulta e ao consentimento enunciado em normas nacionais e internacionais e interpretam essas normas a partir de suas próprias tradições sociais e culturais, de seus direitos próprios e de suas instituições políticas. Assim, ressignificam e reafirmam normas e acordos sociopolíticos internos a fim de fortalecer-se coletivamente. 

“Ao final, os protocolos são o resultado desses processos interculturais e jusdiversos e são apresentados para o Estado e outros atores interessados como um instrumento de afirmação da autodeterminação. Assim, o processo de constituição e desenvolvimento de um protocolo autônomo, ou as discussões sobre normas e procedimentos internos de consulta e consentimento, faz-se essencial para a posterior realização de uma consulta adequada e significativa,” explica.

>> Baixe aqui o PFD da publicação

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