Desde que iniciaram o processo de identificação e demarcação de sua Terra Indígena, os Wajãpi, organizados no Conselho das Aldeias Wajãpi – Apina demonstraram preocupação com a proximidade do Projeto de Assentamento Perimetral Norte que o Incra criou muito próximo ao limite da terra em demarcação. Durante a década de 1990, das assembléias do Apina, saiu-se a deliberação de que demandariam do Estado a criação de uma Faixa de Amortecimento, demanda que, levada aos órgãos competentes (Incra, Funai), deixou assustados os pequenos agricultores familiares que, estabelecidos no Projeto de Assentamento, temiam perder sua tão sonhada terra.
Identificando que o nome dado à iniciativa trazia consigo uma conotação que poderia ser entendida pelos vizinhos como agressiva, na primeira década dos anos 2000 os Wajãpi – que não abandonaram a preocupação com a proximidade entre a Terra Indígena e o Assentamento – deliberaram prosseguir lutando por esta causa, mas modificaram o desenho da proposta, que passou a ser conhecida como Faixa de Gestão Compartilhada. Mais do que mudar o nome da iniciativa, os Wajãpi decidiram promover uma articulação com seus vizinhos a fim de proporcionar a gestão integrada e participativa desta faixa do Assentamento que encosta à terra indígena.
Com o advento do Conselho Piloto do Mosaico de Áreas Protegidas da Amazônia Oriental, os Wajãpi puderam contar com mais elementos e apoio para implementar essa iniciativa, sobre a qual sempre tiveram sólido consenso, e que se pauta pela filosofia segundo a qual “se os assentados estão bem, a terra indígena está bem”. Desde a criação do Conselho do Mosaico, esta articulação ganhou força, e, consolidada a interação com atores importantes no Assentamento, os Wajãpi puderam dialogar muito e incluí-los no próprio desenho desta proposta.
Foi assim que, em momentos deliberativos internos (assembléias do Apina, da Awatac, reuniões), e em fóruns como os promovidos pelo Mosaico de Áreas Protegidas, a voz dos vizinhos foi incorporada à demanda Wajãpi e, diante disso, o Apina passou a chamar a proposta de “Faixa da Amizade”: mais do que uma faixa de amortecimento ou gestão integrada e compartilhada, foi ficando claro que, para que a Terra Indígena Wajãpi esteja bem, o Assentamento tem de estar bem e que, para além disso, a relação com os vizinhos, que tinha grande potencial, poderia e deveria ser fortalecida, a fim de que, de uma Faixa, se passasse a um grande feixe de amizades.
Projeto Carteira Indígena / MMA
Foi com base neste aprendizado que a Associação Wajãpi Terra Ambiente e Cultura – Awatac submeteu ao Ministério do Meio Ambiente (linha de financiamentos chamada Carteira Indígena), um projeto que tinha como objetivo fortalecer estas relações entre Wajãpi e seus vizinhos, já que estas relações existem no plano local e cotidiano, mas, para realizar a Faixa da Amizade, era necessário relações mais institucionais, formativas.
O Projeto foi aprovado pelo MMA, com algumas condicionantes, dentre as quais, que a seu cabo fossem plantadas mudas de espécies nativas na região onde se deseja fortalecer a Faixa. Aproveitando as boas relações com a Escola Da Família Agrícola da Perimetral Norte, Comunidade do Cachorrinho, onde estudam filhos de assentados de todo o Assentamento Perimetral Norte, a Awatac, assessorada pelo Iepé, estabeleceu uma cooperação com a Escola que visa envolver os jovens na articulação pró-faixa, fazendo disso um processo formativo sobre o Mosaico, áreas protegidas, gestão socioambiental e políticas públicas, ao mesmo tempo em que, fortalecendo o viveiro de mudas da Efapen, as espécies nativas ali serão cultivadas.
A partir de junho de 2014, depois de uma série de reuniões com os vizinhos para acertar pactos e consensos sobre a Faixa e mobilizar os atores, a Awatac começou a executar o Projeto, inaugurado com uma reunião na Efapen da qual saiu-se com diversos encaminhamentos concretos, dentre eles a escolha das espécies nativas cultivadas de forma comum entre os Wajãpi e seus vizinhos num esforço simbólico de plantar sementes de amizade. Foram eleitas frutíferas nativas como cupuaçu, bacaba, pupunha e bacabi como as espécies sobre as quais as partes (Wajãpi, vizinhos, e Efapen) se debruçarão neste esforço comum.
Foi nesse contexto que, entre os dias 04 e 05 de agosto de 2014, a Awatac promoveu, no Centro de Formação e Documentação Wajãpi, região do Aramirã, a Primeira Oficina pelo Projeto Carteira Indígena. Participaram da oficina 5 alunos da Efapen, o professor e engenheiro agrônomo Diego Paixão, Raimundo Ferreira Mendes e Antônio Paulino Lima da Vila de Tucano II, Pedro Amaral da Vila de Sete Ilhas e Dona Vera Lúcia, da Vila de Riozinho, além dos pesquisadores Kupenã e Pasiku Wajãpi que assessoraram os 8 jovens Wajãpi que, tendo entre 13 e 16 anos, jamais haviam participado de uma oficina de trabalho.
Edilza Serrano e Márcia Franceschini do Programa de Articulação Regional do Iepé participaram da oficina, ministrada por Bruno Caporrino do Programa Wajãpi do Iepé. O objetivo da oficina era promover reflexões cobre os jeitos diferentes de conhecer e lidar com as frutíferas regionais que se plantará no viveiro da Escola pelo Projeto, e, assim, sistematizar saberes tradicionais dos assentados, dos Wajãpi e conhecimentos técnicos sobre as sementes e mudas dessas frutíferas para subsidiar a construção do banco de sementes para o viveiro.
Foi possível dividir os participantes em três grupos (tradicional da perimetral, Wajãpi e técnico) e sistematizar conhecimentos, primeiro sobre as modalidades de plantio e, portanto, de relação com os ambientes e as plantas, bem como sobre as relações ecológicas que transitam em torno deste universo para, num segundo momento, sistematizar saberes sobre as sementes das frutíferas que se plantará. Feitos estes exercícios, os grupos sistematizaram seus conhecimentos sobre as interações ecológicas entre as frutíferas e seus ambientes, com foco na frutificação, a fim de que o trabalho em torno do banco de sementes seja, literalmente, orgânico, e que, depois de prontas as mudas, estas frutíferas sejam plantadas pelos vizinhos de acordo com o que, espera-se, seja um esboço de Sistema AgroFlorestal.
A missão da oficina era trazer à tona as diferenças entre os jeitos Wajãpi, dos assentados, e científico/técnico de lidar com as sementes, a fim de que, frisadas essas diferenças, o trabalho comum para a realização das mudas não desrespeite ou desvalorize os modos Wajãpi e dos vizinhos de lidar com os ambientes, as plantas, sementes, etc. O objetivo era, também, sistematizar informações sobre aspectos mais práticos da coleta, transporte, armazenamento e tratamento das sementes, mas o curto tempo não o permitiu, ficando isso como tema da próxima oficina. Encaminhamentos sobre como os Wajãpi vão se organizar para coletar e armazenar as sementes, bem como para levá-las à Efapen, ficarão a cargo da Awatac que se ocupará disso nos próximos meses.