POVOS E POPULAÇÕES

Os povos indígenas que hoje habitam a faixa de terras que vai do Amapá ao norte do Pará possuem uma história em comum de relações comerciais, políticas, matrimoniais e rituais que remonta a pelo menos três séculos.

Essas relações até hoje não deixaram de existir nem se deixaram restringir aos limites das fronteiras nacionais, estendendo-se à Guiana Francesa e ao Suriname. Essa amplitude das redes de relações regionais faz da história desses povos uma história rica em ganhos e não em perdas culturais, como muitas vezes divulgam os livros didáticos que retratam a história dos indígenas no Brasil. 

Foto: Francisco Paes

No caso específico desta região, são séculos de acúmulo de experiências de contato entre si que redundaram em inúmeros processos, ora de separação, ora de fusão grupal, ora de substituição, ora de aquisição de novos itens culturais. Processos estes que se somam às diferentes experiências de contato vividas pelos distintos grupos indígenas com cada um dos agentes e agências que entre eles chegaram, dos quais existem registros a partir do século XVII.

É assim que, enquanto pressupomos que nós descobrimos os indígenas e achamos que, por esse motivo, eles dependem de nosso apoio para sobreviver, com um pouco mais de conhecimento sobre a história da região podemos constatar que os povos desta parte da Amazônia nunca viveram isolados entre si. E, também, que o avanço de frentes de colonização em suas terras não resulta necessariamente num processo de submissão crescente aos novos conhecimentos, tecnologias e bens a que passaram a ter acesso, como à primeira vista pode nos parecer. 

Ao contrário disso, tudo o que esses povos aprenderam e adquiriram em suas novas experiências de relacionamento com os não-indígenas insere-se num processo de ampliação de suas redes de intercâmbio, que não apaga – apenas redefine – a importância das relações que esses povos mantêm entre si, há muitos séculos, ‘apesar’ de nossa interferência.

Os registros históricos sobre o avanço das frentes de colonização na região a partir do século XVII permitem-nos comprovar que esta localização atual é resultante de um longo processo histórico de refúgio das populações indígenas, cujos movimentos ao longo do período colonial deslocaram inúmeros grupos a partir do litoral e do delta do Amazonas em direção ao interior do Amapá e do norte do Pará.

Durante esse processo, povos que acumulavam uma longa história de relações entre si isolaram-se no decorrer dos séculos XVIII e XIX, em diferentes pontos de difícil acesso, tanto da várzea e da floresta, quanto das serras, campos e rios encachoeirados que cruzam a região. Foi nesta situação de refúgio que, a partir da virada do século XX, estas populações foram sendo novamente contatadas em ambos os lados da fronteira do Brasil com o Suriname e com a Guiana Francesa, desta vez não mais pelas antigas frentes de colonização, mas sim por frentes extrativistas, bem como por viajantes, missionários e, já no século XX, por representantes de órgãos assistenciais. 

Foto: Iepé

Tendo avançado com propósitos diferenciados, estas novas frentes, principalmente de extrativistas e aventureiros, levaram consigo uma série de novas doenças aos grupos indígenas contatados, causando baixas populacionais significativas, sobretudo na primeira metade do século XX. Nesse contexto é que começaram a ser implantadas políticas assistenciais de saúde e educação por parte dos governos do Brasil e dos países fronteiriços, visando reverter esse quadro.

É, portanto, à segunda metade do século XX que remonta não apenas o surgimento dos atuais grupos étnicos que povoam a região, como a implantação do padrão de ocupação territorial baseado na concentração das aldeias em torno de postos de assistência. A transformação dos amplos territórios e dos percursos historicamente trilhados – em função das redes de intercâmbio mencionadas acima – em ‘terras indígenas demarcadas’ é mais recente ainda, datando o início desse processo de menos de vinte anos.