POVOS KARIB-GUIANENSES DO NORTE DO PARÁ

O que se sabe hoje, muito simplificadamente, sobre os povos indígenas karib-norte paraenses é que se chamam Aparai, Wayana, Tiriyó, Katxuyana, Waiwai, Hixkariyana.

Esses são os nomes pelos quais os povos dessa região tornaram-se oficialmente mais conhecidos desde os primeiros contatos, nas décadas de 1950 e 1960, até recentemente. O que pouco se sabe é que tais nomes (1) são bastante genéricos; (2) não correspondem exatamente às divisões sociais e políticas próprias; (3) escondem uma sociodiversidade muito maior.

Em um importante levantamento etno-linguístico publicado em 1958, foi registrado o impressionante número de 144 “tribos” indígenas vivendo em mais de 100 aldeias na região conhecida, desde a ditadura militar, como calha norte do Pará. Os membros dessas chamadas “tribos” viviam envolvidos em intensas redes de relações e em amplos circuitos de trocas que se concretizavam por meio de viagens frequentes, a pé ou de canoa, pela malha de estreitos rios e igarapés que recobrem a região.

Porém, nessa mesma época, uma série de incursões exploratórias avançaram por todo o interior da tríplice fronteira entre Suriname, Guiana e extremo norte do Pará. Como sempre acontece em situações de primeiros contatos entre populações indígenas e estrangeiras, a falta de imunidade dos indígenas a doenças infectocontagiosas desconhecidas, leva rapidamente a epidemias e altas taxas de mortalidade.

Na época, tal situação levou os governos dos três países – Suriname, Guiana e Brasil, a autorizarem a atuação de missões religiosas em socorro àquelas vidas. Essa atuação se deu a partir da instalação de aldeias-sede dessas Missões que funcionavam como “bases de atração” da população indígena da região.

No caso brasileiro, foram instaladas aldeias-sede em quatro pontos do norte do Pará: Kassawá e Mapuera (na atual TI Nhamundá/Mapuera), além de Bona e Missão Tiriyó, (na atual TI Parque do Tumucumaque). Fundadas entre as décadas de 1960 e 1970, estas aldeias funcionaram, durante quase três décadas, como postos de assistência, únicos lugares onde se dispunha de ambulatórios, escolas e pistas de pouso que se tornaram cada vez mais indispensáveis na vida desses povos.

Desde então, e pelas três décadas seguintes, um vazio demográfico impressionante assolou a região, tornando-a amplamente desabitada, enquanto as poucas e grandes aldeias-sede de bases missionárias foram reunindo o máximo contingente populacional indígena que conseguiam atrair, tornando-se superpopulosas para os padrões locais.

Passando a viver nessas grandes aldeias, aquela miríade de “tribos” que compreendia uma imensa sociodiversidade cultural e linguística, que antes vivia espalhada em mais de 100 pequenas aldeias, de acordo com um padrão próprio de ocupação territorial e uso controlado de recursos naturais, sofreu transformações significativas sobretudo no que diz respeito à diversidade sócio-cultural e linguística.

De um lado, para simplificar a forma de identificação dos povos concentrados naquelas grandes aldeias, os mesmos passaram a ser oficialmente reconhecidos por nomes genéricos tais como Wawai, Hixkariyana, Tiriyó, Kaxuyana, Wayana e Aparai, basicamente.

Em paralelo, ocorreram processos de uniformização linguística no âmbito das grandes aldeias-base de missões religiosas onde esses povos passaram a viver concentrados, e em cada uma delas eram escolhidas as “línguas mãe” locais. Era com base nelas que as populações locais passavam a se comunicar e aprender a ler e escrever. E para elas eram traduzidas as bíblias por parte dos missionários responsáveis por cada aldeia-base.

Assim, esses povos se viram aos poucos, deixando de lado o uso de suas línguas e dialetos específicos, que antes eram praticamente tantos quantos eram os grupos diferenciados ali existentes.

Tais adversidades vividas pelos povos originários dessa região se refletem até hoje no nosso modo de conhecer a mesma, baseado na visão de que se trata de um imensidão de florestas virgens pontualmente habitadas apenas por uma meia dúzia de povos indígenas, justamente aqueles que se tornaram oficialmente reconhecidos pelo Estado brasileiro e pela sociedade em geral.

Porém o que levantamentos e estudos atuais junto a esses povos comprovam é que um aspecto fundamental permanece presente e operante entre esses povos: a memória viva de suas origens diferenciadas no tempo e no espaço da ampla região hoje conhecida Calha Norte do Pará. E é com base nessa memória que, diante da dificuldade de adaptação ao modo de vida baseado na alta concentração populacional, aliada ao rápido esgotamento dos recursos naturais disponíveis no entorno daquelas grandes aldeias, a partir dos anos 1980 começaram a surgir iniciativas de retomada do padrão tradicional de ocupação territorial baseado em aldeias pequenas e dispersas, de acordo como concebem seu modo próprio de bem viver.

Este era apenas o começo de um movimento de redispersão e reocupação territorial reverso ao processo ‘semiforçado’ de abandono de territórios de origem e de centralização em grandes aldeias, vivido nos anos 1960. Desde então, essa redispersão não se deu de forma aleatória, mas com base na reocupação de áreas antigamente habitadas pelos avós e bisavós, quando o comprovado e reconhecido pertencimento a uma origem específica, dentre aquela miríade de povos, se torna um importante critério indígena de definição do direito de abertura de novas aldeias. Demonstrando assim que a memória da sociodiversidade a que se pertence é até hoje operante no modo de organização social, territorial e política desses povos.

Portanto, fechar os olhos para a necessidade que esses povos têm hoje de não mais se esconderem nas denominações genéricas sob as quais se tornaram oficialmente conhecidos, tais como Waiwai, Hixkariyana, Katxuyana, Tiriyó, Wayana e Aparai, é fechar os olhos para aquilo que a própria Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas (PNGATI) propõe como uma de suas diretrizes, a saber: “reconhecimento e valorização das organizações sociais e políticas dos povos indígenas e garantia das suas expressões, dentro e fora das terras indígenas”.

Um dos resultados de um recente levantamento realizado pelo Iepé e pelas associações indígenas locais, em conjunto com a FUNAI, nas 5 Terras Indígenas onde hoje habitam os descendentes – dos sobreviventes – daquelas 144 coletividades chamadas “tribos” ou sub-grupos, mas denominadas nas línguas locais pelo sufixo karib –yana, ou cognatos (-yó, -koto, -yena, e outros), foi o de atestar a sua continuidade nos dias atuais.

Inúmeras foram apontadas pelos moradores dessas TIs, quando indagados sobre suas origens étnicas. A soma total de coletividades às quais disseram pertencer os 6600 moradores dessas 5 TIs foi de 56 povos ou yanas, diferentes, em sua grande maioria falantes de línguas e dialetos da família linguística karib, atualizando a existência um verdadeiro Corredor de Povos Indígenas Karib que atravessa as 5 TIs.

Suas denominações são as seguintes: Ahpama, Ahpamano, Aipïpa, Akïyó, Akuriyó, Alakapai, Aparai, Arahasana, Aramaso, Aramayana, Arara, Aturai, Caruma, Farukwoto, Hixkaryana, Inkarïnyana, Kahyana, Kaiku Apërën, Arimisana, Kamarayana, Karapawyana, Karará, Karaxana, Katuwena, Katxuyana, Kukuyana, Manipoyana, Maraso, Mawayana, Murumuruyó, Okomoyana, Opakyana, Osenepohnomo, Wezamohkoto, Patakaiyana, Piayanakoto, Pïrëuyana, Pirixiyana, Pïropë, Ramayana, Sakïta, Tarëpisana, Tiriyó, Tunapeky, Tunayana, Txarumã, Txikiyana, Upuruiyana, Waiwai, Wajãpi (do Cuc), Wajãpi (do Molokopote), Waripi, Wayana, Werehpai, Xerew, Xowyana.

Entender a necessidade que esses povos têm hoje de não mais se esconderem nas denominações genéricas sob as quais se tornaram oficialmente conhecidos – tais como Waiwai, Hixkariyana, Katxuyana, Tiriyó, Wayana e Aparai, passa por entender o processo histórico de descentralização territorial vivido na região, em que, conforme buscam recuperar seus padrões tradicionais de ocupação territorial, o fazem com base na recuperação das próprias formas de organização social e política que não estavam mais operando no contexto da centralização em grandes aldeias, mas que voltam a operar quando o plano é se redispersar pelo território e viver em aldeias menores.

Ou seja, o que se verifica hoje na região, é que: (1) existe uma sociodiversidade imperceptível ao olhar estrangeiro; (2) essa sociodiversidade informa decisões sobre gestão territorial e ambiental; (3) os Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) dessas TIs devem levar isso em consideração em consonância com a abertura da Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas (PNGATI).