Durante os dias 05, 06 e 07 de dezembro de 2017, lideranças, professores, jovens e agentes ambientais indígenas das cinco regiões do Oiapoque se reuniram no Centro de Formação da Terra Indígena Uaçá (Oiapoque, Amapá) para iniciar a elaboração de seu protocolo de consulta, contando com a mediação da advogada Luciana Nogueira Nóbrega, da Fundação Nacional do Índio. A oficina iniciou apresentando o direito de consulta livre, prévia e informada, retomando os dispositivos legais que a sustentam, por meio de uma tradução dos termos jurídicos. Luciana apresentou os artigos 6 e 7 da Convenção nº169 da OIT (1989) e o artigo 19 da Declaração dos Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), situando as motivações para sua elaboração, o contexto no qual se inserem e a diferença entre uma política baseada na tutela e uma política baseada na consulta.
O direito de consulta está vigente no país, desde que o texto da Convenção 169 foi ratificado pelo governo brasileiro. Ele prescinde de regulamentação, uma vez que é auto-aplicável. O governo brasileiro tentou regulamentar sua obrigação de consultar os povos indígenas quando medidas administrativas e legislativas pudessem afetá-los, mas esse processo foi interrompido sem que o governo chegasse a um consenso ou construísse uma proposta de regulamentação. Decisões recentes da justiça brasileira apontam para a obrigação do Estado de consultar os povos indígenas, independente de tal direito (por parte dos povos indígenas) e de tal obrigação (por parte do Estado) estar regulamentado.
Nos últimos anos, vários povos indígenas tomaram para si a tarefa de indicar ao Estado a foram como consideram adequada de serem consultados, explicitando aspectos de sua organização social e de sua organização política. Surgiram assim os protocolos próprios de consulta prévia, em que povos indígenas formalizam perante o Estado a diversidade de procedimentos adequados de dialogar com cada povo indígena, quando se pretende que ele participe de processos de tomada de decisões que podem afetar suas vidas, direitos ou territórios. No Brasil, os povos Wajãpi, Munduruku, Apiaká, Krenak, Xingu e Juruna foram os pioneiros em elaborarem seus próprios protocolos de consulta.
Esses protocolos foram apresentados e analisados durante o estudo conduzido nessa oficina com os povos do Oiapoque sobre o direito de consulta prévia, juntamente com o texto da Convenção 169 e da Declaração da ONU.
“O governo trata o índio como se fosse um povo só. Aqui mesmo nos tratam como iguais. Mas em Oiapoque, somos 4 povos indígenas, com línguas e culturas diferentes, e isso tem que ser levado em conta no nosso protocolo” , afirmou a professora Sonia Karipuna.
Após discussões sobre as preocupações com as ameaças do entorno (empreendimentos como pequenas centrais hidrelétricas e prospecção de petróleo, o avanço do agronegócio, a pavimentação da BR156, entre outros) e o relato de diversas situações em que a falta de consulta adequada gerou grandes problemas nas terras indígenas do Oiapoque (construção de obras do governo nas aldeias, construção da rodovia, entre outros), afirmou-se que o protocolo pode ajudar no diálogo com o governo e a lidar com as pressões do entorno.
“A consulta deve ser feita para evitar problemas que afetam os povos indígenas. Para obter mais informações e continuar dialogando com o governo de uma forma bem organizada. Para nós indígenas Palikur, Galibi Marworno, Gabili Kali’nã e Karipuna, a consulta serve como uma ferramenta de defesa dos nossos direitos que estão previstos na Convenção nº 169 da OIT e no artigo 19 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas”.
Através de uma atividade de encenação de uma situação de consulta, como também de um jogo da verdade, os grupos discutiram sobre o que é e o que não é direito de consulta, os conceitos de livre, prévia, informada e de boa fé, refletindo sobre sua abrangência e a aplicação em casos específicos.
“É preciso fortalecer as nossas bases e organizações indígenas e reforçar nossas normas internas (o PGTA e o Planto de Vida), evitando que a gente se destrua internamente enquanto dialoga com o governo” disse Domingos Santa Rosa.
A oficina também contou com a participação de João Paulo Wajãpi, que apresentou o Protocolo de Consulta e Consentimento Wajãpi e explicou: “Nosso protocolo não foi construído só em 3 reuniões, foi todo um processo. O protocolo é como uma arma, nós usamos para ser da comunidade. Se o órgão do governo quer fazer algo na nossa terra, primeiro tem que consultar as nossas organizações, depois a comunidade. Não pode conversar um por um, tem que respeitar o nosso protocolo”.
O último dia foi dedicado a um primeiro exercício de construção do protocolo entre os povos do Oiapoque. Em grupos por regiões, discutiu-se: o que deve ser consultado? Quando deve ser consultado? Como deve ser consultado? Onde deve ser consultado? Com quem deve ser feita a consulta? Para que é feita uma consulta? A partir desse trabalho, validou-se um primeiro documento para ser levado para as comunidades e reuniões regionais, a partir do plano de trabalho elaborado no final da reunião.
Pioneiros na elaboração do Plano de Vida e de um comitê gestor de empreendimentos, o protocolo de consulta parece ser mais uma ferramenta que vem a fortalecer a organização coletiva dos povos indígenas do Oiapoque, especialmente frente aos diferentes desafios que vem encontrando.
“Ocorrem muitas mudanças e a gente vai ficando frágil para lidar com as pressões de fora, com os impactos do entorno. Agora parece ser o momento de colocar essas normas no papel, pois elas já estão enfraquecidas na mente e nos corações das pessoas” afirmou Domingos Santa Rosa.
A iniciativa dessa oficina foi apoiada pelo Iepé, Funai e Rede de Cooperação Amazônica (RCA).