Para celebrar o Abril Indígena, durante o dia 12 de abril, a convite do corpo docente do curso de Direito da Faculdade Estácio Do Amapá – Famap, representados pelos professores Marcélia Picanço Valente e Igor Barros, o Iepé organizou uma exposição de publicações e participou da mesa “O Direito dos Povos Indígenas: representatividade, dilemas e prevenção”. Na ocasião, a assessora indigenista Isabel Mesquita, do Programa Wajãpi, ministrou palestra sobre o tema “Visibilidade e direitos diferenciados dos Povos Indígenas no Amapá e Norte do Pará”, procurando desmitificar e esclarecer equívocos em relação aos conceitos de cultura, modo de vida e território. Também compuseram a mesa Mitore Cristiana Tiriyó Kaxuyana, pela APITIKATXI – Associação dos Povos Indígenas Tiriyó, Kaxuyana e Txikuyana, Demétrio Amisipa Tiriyó, pela Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Estado do Amapá e Norte do Pará (APOIANP), e, Marcos Velho, pela FUNAI. A moderação foi conduzida pela pesquisadora Hiandra Pedroso.
O evento é fruto de um projeto interdisciplinar criado com o objetivo de abordar questões indígenas em disciplinas como História do Direito Brasileiro, Fundamentos Antropológicos e Sociológicos, Sociologia Jurídica, Psicologia aplicada ao Direito, e Direito Penal, frente à necessidade de um trabalho que promova a reflexão acerca da história da construção da identidade brasileira, do reconhecimento do amparo legal conferido no ordenamento jurídico e da violação dos direitos humanos dos povos indígenas. Para tal, a equipe composta pelos professores Marcélia Picanço Valente, Jade Santos, Rosilene Brito e Igor Barros Santos, conduziu, durante a semana que precedeu a mesa, atividades de pesquisas em sala de aula, produção textual e palestras, que culminaram no debate com representantes indígenas do estado do Amapá e norte do Pará.
Para Marcos Velho, o espaço de debate inclusivo e participativo construído pela instituição é inédito no estado, e tem sua importância aumentada justamente pelo componente histórico e populacional da região, onde se partilha o território e uma cultura continuamente viva dos povos indígenas e demais populações tradicionais. Velho ressaltou que a atual conjuntura nos traz uma reflexão sobre a abissal perda de referências e marcos civilizatórios, caracterizando um retrocesso na área jurídica e de direitos, conquistados e fundamentados pela Constituição de 1988, mostrando, possivelmente, uma ineficácia no real alcance dos mesmos. Reforçou, ainda, a importância de que essa temática permeie a formação básica e atuação dos futuros advogados, compreendendo o seu papel como atores e protagonistas de práticas sociais para disputa e resgate de valores da nossa própria história, defendendo de fato o pluralismo e a multiculturalidade da nossa sociedade.
Representante da APITIKATXI e militante do movimento União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira – UMIAB, Mitore Cristiana Tiriyó Kaxuyana ressaltou a persistência de uma visão colonizadora, inclusive nos espaços acadêmicos, que busca apagar a multiplicidade e complexidade das realidades indígenas, concebendo a miríade de povos originários como “um grupo único” com uma cultura presa ao passado, e sem qualquer tipo de saber e conhecimento. Para ela, é importante que se reconheça que os povos indígenas possuem um saber tradicional, construído ao longo do tempo e repassado de geração em geração pelos antepassados, e que permanece vivo pela grande habilidade de adaptação e resistência dos povos indígenas frente aos mais diversos preconceitos, ataques aos direitos e invisibilidade impostos. A relação com o mundo não-indígena, argumentou, não resulta na perda dos modos indígenas de vida, mas na sua transformação. Essa relação com os conhecimentos dos brancos, inclusive, como pontuou Mitore, tem trazido novos elementos e formas de se ver e se entender como mulher: hoje as mulheres indígenas têm se tornado cada vez mais protagonistas na luta política em defesa dos direitos e territórios. Como afirmou, “as mulheres indígenas entendem o território como o próprio corpo, como a própria vida”, e têm fundamental importância na manutenção da qualidade de vida das aldeias, principalmente pela participação na agricultura e na criação dos filhos.
Demétrio Amisipa Tiriyó, membro da APOIANP, abriu sua apresentação com uma fala em Tiriyó, exatamente para reforçar os pontos colocados por Mitore, mostrando que a diversidade linguística também é característica dos povos indígenas da região. Demétrio apresentou registros fotográficos de aldeias e das práticas cotidianas de seu território de origem, a Terra Indígena Parque do Tumucumaque, explicitando também dados populacionais, dimensões territoriais e um dos grandes desafios da região, a dificuldade de acesso às aldeias. Ao mostrar mapas da região, ressaltou que a noção de limite territorial, e a ocupação restrita de um território demarcado, não diz respeito aos modos de vida indígenas, mas foi imposta na relação com o Estado brasileiro, responsável pela demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. Pontuou, também, que a demarcação é fundamental para assegurar o bem viver destes povos, e que, agora, as TIs Parque do Tumucumaque e Rio Paru D’Este possuem um plano de vida e de gestão que promove o uso da terra de acordo com o os seus próprios costumes, buscando para tal, a garantia do direto ao acesso à saúde e educação diferenciadas. Acrescentou, ainda, que para viver bem nos territórios demarcados e para enfrentar novos desafios colocados pelos desdobramentos da relação com o Estado, os povos indígenas constroem parcerias e obtém novos conhecimentos para viver nesse novo contexto colocado pelo contato com os não-indígenas,.
Já a assessora indigenista do Iepé, Isabel Mesquita, procurou trazer dados que visibilizassem a diversidade, riqueza e distribuição dos povos indígenas no Brasil, exatamente para estimular a desconstrução de estereótipos que usualmente vêm à tona quando se pensar o que é ser indígena atualmente em nossa sociedade. Isabel trouxe elementos para desconstruir as ideias de que os indígenas são pobres, de que ocupam uma grande parcela do território e pouco produzem (“muita terra para pouco índio”) e de que deixam de ser indígenas quando vivem em contextos urbanos, tratando da diversidade, variedade e quantidade da produção das roças indígenas, da inadequação dos parâmetros de riqueza e pobreza utilizados para avaliar as realidades indígenas, e de como cultura e identidade não são fixas e nem medidas por adereços, portanto, não se perdem se um indígena usa celular, roupa ou mora na cidade. Destacou a riqueza dos conhecimentos dos povos indígenas e de sua cosmologia, e a importância dos direitos diferenciados que garantam aos povos indígenas viverem bem, considerando o quanto a ausência destes direitos compromete os seus modos de viver e de conhecer o mundo.
O intuito do evento é que as ideias debatidas sejam tema de trabalhos e tópicos desenvolvidos pelas disciplinas da grade curricular do curso de Direito. A moderadora, Hiandra Pedroso, reforçou que o Amapá é um estado originalmente indígena e quilombola, que territorialmente está muito próximo a esses povos e comunidades, mas ao mesmo tempo muito distante na discussão de direitos.
A organização e mobilização para a construção desta mesa contou com o apoio do programa de Articulação Regional do Iepé.
Texto: Isabel Mesquita e Renata Cunha
Edição e revisão: Marina Rabello