Nota da Sociedade Civil Brasileira I 04 de março de 2022
O governo brasileiro segue agindo de modo inadequado nos fóruns internacionais. Em pronunciamento realizado pela representante do governo brasileiro perante o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH/ONU), em seu 49º período de sessões, em 28/02/2022, em Genebra, a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, fez propaganda enganosa. Apresentou uma versão das ações do governo federal ocultando dados e distorcendo a realidade. Ainda que tenha reafirmado a posição em defesa da paz, historicamente assumida pelo Brasil, passou ao largo da maior crise da geopolítica internacional, com a guerra em curso na Ucrânia, ao não expressar posição firme e dura de condenação das guerras e dos impactos dos bloqueios econômicos na vida das populações de diferentes países atingidos por tais medidas, além de ser contraditória com o incentivo dado pelo governo com a flexibilização e liberalização da posse e uso de armas no Brasil.
A sociedade civil brasileira, que acompanhou com atenção a fala da Ministra Damares Alves nas Nações Unidas, afirma que, quem a ouve, fica se perguntando a respeito de qual país ela está falando, já que diferente do afirmado pela Ministra, o atual governo atua para desmontar, inverter, confundir e, sobretudo, para destruir os avanços nos mecanismos de promoção e defesa dos direitos humanos existentes no Brasil. As ações de governo fazem uma política antidireitos humanos, invertendo princípios e preceitos, utilizando-se de ferramentas que restauram padrões conservadores, discrimina com base no gênero e na vivência sexual. Tem uma política antigênero, antiaborto e propagação de valores tradicionalistas em defesa da “família”. Mas, a sociedade civil brasileira não estranha esta posição, visto que o Presidente da República, em sua longa trajetória parlamentar, nunca fez outra coisa do que desprezar e atacar os direitos humanos e a quem os defendesse, desmoralizando defensores/as e as lutas coletivas assentadas numa visão internacional dos direitos humanos reafirmadas nos parâmetros da Conferência de Viena de 1993.
A exposição distorcida da atual situação dos direitos humanos apresentada pela Ministra aprofunda ainda mais o fosso que separa o atual governo das expectativas da sociedade civil articulada para manter o que ainda resta das frágeis políticas de direitos humanos. O que temos em curso no plano nacional no campo das políticas públicas, em especial a implementada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos é um retrocesso amparado numa gestão conservadora sustentada por forças neoconservadoras que alteraram a estrutura do Ministério conforme suas compreensões de direitos humanos em diálogo com uma perspectiva moralizadora da e sobre a política. Neste lugar, mulheres, negras e negros, LGBTQIA+, meninas, entre outros/as são vistos/as como não sujeitos e corpos políticos que precisam ser “domesticados” aos tradicionais papéis de gênero, a um paradigma cisheteronormativo a moldar a composição tradicional da família.
No pronunciamento, a Ministra afirmou que, no plano internacional, “não há no direito internacional qualquer respaldo para se valer do aborto para planejamento familiar”. Ao dizer isso, apresenta mais uma forma de propagar desinformações e ataques que criminalizam as mulheres e a luta coletiva em defesa da descriminalização das mulheres e pela legalização do aborto em diálogo com a reivindicação pela autonomia sexual e reprodutiva das mulheres. As inverdades não estão só nos ataques à luta pelo direito ao aborto legal, mas no desinvestimento na implementação das políticas para as mulheres. No plano internacional, está na contramão das medidas adotadas por países da América Latina (Colômbia, Argentina, México, Uruguai) para legalização do aborto. O “Consenso de Genebra” representa uma ação internacional antigênero levada adiante pela ultradireita conservadora e religiosa.
Ressaltamos que atual governo não cumpre o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e criou, por meio do Portaria n. 457, de 11 de fevereiro de 2021, um grupo interministerial, que excluiu a participação da sociedade civil, para revisar o PNDH-3. O governo também revogou o comitê encarregado do monitoramento e da implementação do PNDH-3. Diferente do apresentado em seu discurso, o atual governo e seus ministros e ministras estão desmontando o Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, como, aliás, constatou missão recente da ONU no País. O governo também inviabilizando os Conselhos Nacionais, reduzindo participação, cortando apoios e dificultando o funcionamento de suas secretarias executivas. Além disso, desmontou toda a política de educação em direitos humanos, promovendo ataques e criminalizações aos educadores/as para evitar o debate da igualdade de gênero como diretriz do parâmetro escolar e propagar o combate à “ideologia de gênero”. Reduziu recursos para várias políticas de direitos humanos. Colaborou para o enfraquecimento de órgãos de fiscalização e de órgãos encarregados de ações finalísticas como a Funai, Fundação Palmares, o Ibama e outros, resultando na paralisação da identificação e demarcação de terras indígenas e quilombolas. Manipulou as funções do Disque 100, abrindo um canal de denúncia para as pessoas que se sentiram violadas em seu direito de não tomar a vacina contra a Covid-19. Manifestou-se defendendo que exigir a vacinação contra a Covid-19 e o passaporte vacinal poderia significar violação dos direitos humanos – o que foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Conforme amplamente demonstrado pela CPI da Covid-19, o atual governo e seus ministros e ministras colaboraram ativamente para implementar políticas negacionistas em relação à Covid-19.
Ao longo de três anos, o atual governo desestruturou acumulados históricos na área dos direitos humanos e restringiu a abrangência destes direitos. Um exemplo é sua ação para impedir o avanço da proposta do Sistema Nacional de Direitos Humanos. A Ministra Damares Alves assumiu como tarefa pessoal o desmonte e enfraquecimento dos direitos sexuais e reprodutivos, sendo que seu esforço vai no sentido de alterar a lei que garante, em três situações especificas, o direito ao aborto legal e seguro. O atual governo fomenta a intolerância, as falsas informações e os discursos de ódio. Trabalha para fortalecer vertentes seletivistas e meritocráticas que atacam a indivisibilidade, a interdependência e a universalidade dos direitos humanos. A lista de desmontes não está completa, mas já dá um bom indicativo da ação. O mais grave é a omissão do governo diante de vários casos de violações de direitos humanos, nos quais não fez sequer uma manifestação, como num dos mais recentes, a morte brutal do refugiado Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro. Um governo que não se manifesta com força contra violações, torna-se omisso e, por vezes, pode colaborar com sua reprodução.
A Ministra afirmou que 85% da população indígena foi vacinada, referindo-se a uma contagem distorcida, sob o critério equivocado de “indígenas aldeados”, ou seja, aqueles/as que vivem nos territórios demarcados, ignorando que seu próprio governo paralisou o processo de demarcações e os indígenas em contextos urbanos. Na verdade, o governo vem promovendo um apagão de dados sobre a Covid-19 e não pode dar certeza da porcentagem apontada. O vírus que chegou às aldeias e provocou mortes foi levado para dentro dos territórios indígenas por invasores que seguiram atuando ilegalmente nestas áreas em plena pandemia, livres das ações de fiscalização e proteção do governo.
A Ministra afirmou no Conselho de Direitos Humanos que a floresta amazônica segue protegida. Porém, com o desmonte na política ambiental promovido pelo governo de Jair Bolsonaro, a taxa de desmatamento subiu três vezes consecutivas. Em 2021, ela atingiu 13.235 km2, um aumento de 22% em relação a 2020, segundo dados do Prodes/Inpe. É o maior desmatamento da floresta em 15 anos. O período coincide com o menor número de autos de infração por crimes contra a flora aplicados pelo Ibama nas últimas duas décadas. E também com o aumento desenfreado de invasões e garimpos ilegais nas terras indígenas.
É fundamental que o governo brasileiro assuma uma posição firme e consistente de condenação das guerras em curso, entre elas, a da Ucrânia, bem como, das consequências dos bloqueios econômicos na vida das populações, como é o caso do Afeganistão, onde 90% da população vive em insegurança alimentar por causa das medidas de bloqueio impostas ao país. A sociedade civil brasileira espera que o governo do Brasil se posicione de forma clara e consequente contra a guerra e contra todas as medidas restritivas que afetam os povos envolvidos e que colabore para que o diálogo e a resolução pacífica de todos os conflitos seja a medida mais incentivada pelos mecanismos das Nações Unidas.
A sociedade brasileira está desafiada a utilizar um de seus principais instrumentos de promoção dos direitos humanos que é escolher governantes comprometidos com sua efetivação. Confiamos que fará isso de forma consistente neste ano, participando de forma livre e engajada no processo eleitoral. Para isso é fundamental que as autoridades eleitorais sigam firmes no enfrentamento das dinâmicas de deslegitimação e desqualificação do processo eleitoral brasileiro patrocinadas pelo atual mandatário do país e seus seguidores.
Assinam
Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos – ABGLT
Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil – AMDH
Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais – ABONG
Centro de Apoio aos Direitos Humanos Valdicio Barbosa dos Santos.
Conselho Indigenista Missionário – CIMI
Conselho Nacional d
e Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC
Coordenadoria Ecumênica de Serviço – CESE
Fórum Ecumênico ACT Brasil – FE ACT Brasil
Fórum Inter-religioso e Ecumênico do Rio Grande do Sul – FIRE RS
Fundação Luterana de Diaconia – Conselho de Missão entre Povos Indígenas – Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (FLD-COMIN-CAPA)
Instituto de Pesquisa e Formação Indígena – Iepé
Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos – IDDH
Justiça Global
Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH Brasil
Movimentos dos Atingidos por Barragens – MAB
Plataforma DHESCA
Processo de Articulação e Diálogo – PAD
Rede de Cooperação Amazônica – RCA
SOS CORPO Instituto Feminista para a Democracia