Waçá-wara realiza oficina de grafismos no museu Kuahí

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Durante dois dias, o coletivo Waçá-wara, realizou atividades sobre grafismos tradicionais e contemporâneos dos Povos Indígenas do Oiapoque

Texto: Marcelo Domingues

Foto: Joyce Aniká/Rede de Comunicação Arawa

Temas como ritual, mitologia e cosmologia são compreendidos pelos Povos Indígenas de Oiapoque de um ponto de vista particular, ligados a um pensamento específico de cada povo. Foi através desses temas que o coletivo Waçá-wara realizou sua segunda oficina de grafismos tradicionais e contemporâneos. 

A oficina ocorreu no Museu Kuahí dos Povos Indígenas do Oiapoque – no centro do município de Oiapoque-AP – e foi organizada pelo coletivo Waçá-wara através do edital de apoio às organizações indígenas, lançado pelo Instituto de Pesquisa e Formação Indígena – Iepé, com o apoio da União Europeia. A atividade faz parte de um projeto do coletivo de artistas, que visa criar um acervo de obras dos quatro povos da região por meio de oficinas, palestras, exposições e mostras de filmes. “O encontro trouxe muitas discussões em relação às temáticas que a gente vem tratando dentro da cultura, que é a valorização dos nossos artefatos e de nossos conhecimentos ancestrais”, afirma Lenise Batista, do povo Palikur. As discussões abordaram o tema dos grafismos alinhados ao universo cosmológico dos quatro povos indígenas da região: os Galibi Marworno, Galibi Kali’nã, Palikur e Karipuna. “É uma oportunidade de mostrar como é esse universo de exposição, de montagem, de pensar não só a obra final,  mas toda uma preparação para poder finalizar um trabalho”, conta Keyla Palikur.

Foto: Joyce Aniká/Rede de Comunicação Arawa

Apresentação das oficinas

Os grafismos têm forte influência na cultura dos mitos narrados pelas pessoas mais antigas das Terras Indígenas do Oiapoque. Na aldeia Santa Izabel, Yermollay Caripoune vive e produz seu trabalho, nomeado pelo artista de “Adaminã”, que é uma técnica que utiliza a escrita, o desenho e a pintura. Seus motivos geométricos são ligados à mitologia e à cosmologia do povo Karipuna, representando elementos da natureza, animais e seus espíritos, os Karuãna. As cores e os desenhos estilizados aludem ao sobrenatural, com linhas retas em diálogo com linhas circulares, espelhamento, espirais, tracejados e pontilhismo. Yermollay utiliza em suas composições a união de diferentes grafismos, ressignificando seus traços em criações de novas marcas que sobrepõem umas às outras, redefinindo os padrões tradicionais, em uma descontinuidade dos sentidos, gerando realidades que se interconectam e se relacionam  entre si.

Em uma de suas narrativas, Yermollay aborda o mito da criação. Cansado de viver isolado, Temerõ’Q cria seu irmão gêmeo Laposiê, que transita entre três mundos na busca de equilíbrio e proteção aos seres da natureza: o mundo de cima, dos espíritos e das almas; o mundo do meio, da realidade presente e o mundo de baixo, o mundo das águas, em que vivem os animais. Segundo a narrativa, Laposiê  é transformado em uma cobra, a Aramari, uma cobra sobrenatural que, para os Karipuna, é a mãe das águas, responsável por modificar as paisagens da região ao longo do ano. Nos trabalhos de Yermollay, as transformações da natureza estão interligadas com um repertório cosmológico em que os seres sobrenaturais são portadores fundamentais na construção de significados em suas obras.

Foto: Joyce Aniká/Rede de Comunicação Arawa

Para o povo Galibi Marworno, as marcas e grafismos exercem forte influência na cultura dos mitos. Para Nordevaldo Henrique, morador da aldeia Kumarumã, Terra Indígena Uaçá, “todas as marcas têm um significado importante, nós devemos buscar o conhecimento que está com os antigos, porque, quando eles morrerem, eles levam todo nosso conhecimento”, explica.

Nordevaldo é professor da Escola Estadual Indígena Camilo Narciso, localizada na Aldeia de Kumarumã. Aprendeu a confeccionar artefatos, grafismos e as marcas com os mais antigos da aldeia, mas foi no curso de Licenciatura Intercultural da Universidade Federal do Amapá que aprofundou suas pesquisas. Em suas aulas na aldeia, trabalha com o universo cultural da comunidade, incentivando os alunos a participarem das festas tradicionais, abertura de assembleias e reuniões da comunidade. Em sua apresentação, Nordevaldo aborda as representações do grafismo Kuahí e suas variações. “O losango é quando aparecem os cardumes na fase de migração. A maresia (dãdjilo), que é o triângulo, representa o movimento das águas. A fusão do kuahí com o mak tutxi, que é a representação do casco do jabuti, significa a esperteza do jabuti”, explica. 

Nas Terras Indígenas do Oiapoque, cada etnia possui sua marca principal que identifica cada povo por meio dos significados e suas histórias. Na aldeia Kumenê, na Terra Indígenas Uaçá, a arte gráfica do povo Palikur está relacionada à forma de organização social da comunidade, cada grafismo é identificado nominalmente por representar grupos de famílias que apresentam diferenças entre si. “Por mais que a gente se autodenomina como povo Palikur, internamente a gente se organiza entre clãs, por subgrupos”, conta Keyla que apresentou sua pesquisa sobre os grafismos Palikur. 

Keyla é do povo Palikur-Arukwayene, pertence ao Clã Wadahiyene, nasceu e cresceu na aldeia Kumenê, localizada na Terra Indígena Uaçá. Ela trabalha com a técnica da arte digital e sua pesquisa envolve a expressão artística e a discussão de resistências, identidades e, principalmente, a conexão com as memórias de seu povo.  “Cada grafismo que faço, tem referência dos próprios acadêmicos e pesquisadores Palikur sobre as histórias do meu povo”, conta.

Foto: Joyce Aniká/Rede de Comunicação Arawa

Em sua apresentação durante a oficina, Keyla falou sobre os grafismos Palikur relacionados aos clãs e a figura da mulher em diferentes contextos. Um deles fala sobre as cobras, que sempre estiveram presente em suas narrativas, “a cobra é um ser sagrado e, nós, os Arukwayene, somos os filhos de Arukwa, a grande cobra”, disse. As cores usadas nos grafismos Palikur são o vermelho e o preto, produzidos com pigmentos vegetais, principalmente o urucum, o cumatê e o breu, retirado da casca de uma árvore.

Foto: Joyce Aniká/Rede de Comunicação Arawa

Durante os dois dias de atividades, os artistas do coletivo realizaram diversas apresentações, uma delas abordou a pesquisa “Encantos do Maracá”, desenvolvida por Dieimissom Sfair e Edivando Santos. Para o povo Karipuna, o maracá tem um grande significado ritualístico, principalmente na dança da festa do Turé, realizada para a celebração dos karuãnas, como retribuição às curas realizadas através dos pajés. A pesquisa apresentada surge a partir das danças do maracá durante as festas. Para Dieimissom, essa simbologia representa “a luta do movimento indígena, que sempre resistiu e mantém viva a nossa cultura”. Em suas pesquisas, o maracá faz parte de um novo formato, diferente dos tradicionais. Segundo o artista, o novo modelo é maior e arredondado, com grafismos variados, sem penas e decorado com asas de besouro (mamã-solei, na língua kheuol). O objetivo do projeto é mostrar para o público a riqueza das Terras Indígenas do Oiapoque, através da dança e da música. Atualmente, a pesquisa está na fase de produção dos maracás, figurinos, coreografias, gravação da música e do videoclipe que farão parte das apresentações do grupo. 

Por fim, os integrantes do coletivo definiram a data e a programação da próxima oficina, que terá como tema a expografia com foco na curadoria, narrativa, espaço e  iluminação – tudo isso com o grafismo como fio condutor da investigação, aproximando as linguagens, com experimentos e recursos técnicos contemporâneos.

Nossas Terras, Nossas Aldeias

O projeto Nossas Terras, Nossas Aldeias: Terras Indígenas do Amapá e Norte do Pará tem objetivo de fortalecer a prosperidade e qualidade de vida de 20 povos indígenas. A iniciativa é desenvolvida em uma parceria entre o Instituto Iepé junto a dez organizações de povos indígenas, com financiamento da União Europeia.

Esta publicação é um produto do projeto Terras, Nossas Aldeias – Terras Indígenas do Amapá e Norte do Pará, realizado pelo Instituto Iepé com o financiamento da União Europeia. Este material tem conteúdo de responsabilidade exclusiva do Iepé, em caso algum considerar que reflita a posição da União Europeia.

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