Texto: João Bourroul
“A gente não desmata nossa história”.
De PGTA embaixo do braço, foi com essa frase que Cecília Awaeko Apalai deu início a sua fala inaugural na Assembleia da Apiwa (Associação dos Povos Indígenas Wayana e Aparai). Cecília é uma importante liderança para as mulheres e caciques do Tumucumaque Leste. Fundadora da Apiwa, e precursora da Amiwa (Articulação das Mulheres Indígenas Wayana e Aparai), ela vive na aldeia Bona, local que recebeu o encontro entre os dias 4 e 8 de novembro.
O PGTA (Plano de Gestão Territorial e Ambiental) é o documento que orienta não só as pautas da Assembleia, mas também a vida coletiva dentro das Terras Indígenas, um material fundamental para que os direitos dos povos indígenas sejam respeitados.
Assim como no lado Oeste, durante a Assembleia foram escolhidosos integrantes do Comitê Gestordo lado leste do Pakará, Fundo Indígena de recursos criado para apoiar a implementação do PGTA do Tumucumaque,que deve começar a operar em 2025. São três gestores de cada lado do rio. “O Fundo Pakará será um grande avanço para trazer recursos e ajudar nas demandas coletivas”, explica Arinaware Apalai Wayana, presidente da Apiwa.
Outra pauta foi a educação: está faltando professores não indígenas dentro da aldeia, segundo Cecília. “A educação não está muito boa aqui. Professores indígenas nós temos, mas os não indígenas não querem vir para a aldeia. Isso prejudica a educação escolar dentro da Terra Indígena”, lamenta a liderança.
“A assembleia é importante porque é um espaço de discussão e encaminhamento de demandas. É aqui que fortalecemos nossa política externa e também a interna”, afirma Arinaware. Ele diz que as Assembleias também servem para avaliar o ano que passou. Para Arinaware, a maior conquista foi o avanço da internet. “Conseguimos levar a internet para onde era mais difícil: as aldeias mais remotas que se encontram nos limites do nosso território”.
“Apesar de existirem ainda muitos desafios a serem enfrentados, a contínua realização dessas assembleias coincide com a gradual melhoria da qualidade de vida dentro do território”, comenta Denise Fajardo, coordenadora do Programa Tumucumaque-Wayamu, do Instituto Iepé.
A assembleia promoveu diálogos entre as lideranças indígenas e membros não só do Instituto Iepé como também de membros de secretarias estaduais. “As associações têm essa força de trazer para a Assembleia gestores públicos das secretarias de educação e saúde. Em outras ocasiões já vieram deputados, senadores e até governadores”, lembra Denise. Nessa edição de 2024, os financiadores também estavam presentes nas figuras de representantes da Nia Tero, LLF (Legacy Landscapes Fund) e KfW.
Para nós na Nia Tero é essencial fortalecer os espaços de governança dos territórios. A gente está aqui como ouvintes, o mais importante é essa autodeterminação, essa capacidade de organização interna dos povos indígenas”, conta Nara Baré, Diretora da Nia Tero no Brasil. “É a primeira vez que estou na Terra Indígena Parque do Tumucumaque. Ver lideranças indígenas e representantes do Estado, todos em paz, sentados lado a lado e discutindo respeitosamente é muito bonito”, relata Marcus Stewen, gerente de projetos da KfW.
Apiwa, Amiwa e Ajiwa: articular para resistir
O Programa Tumucumaque foi criado dentro do Iepé em 2005. Até 2010, o trabalho era um pouco mais concentrado no lado oeste da Terra Indígena Parque do Tumucumaque, justamente por conta da existência da Apitikatxi (Associação dos Povos Indígenas Tiriyo, Kaxuyana e Txikiyana) naquela região. A questão da falta de uma associação organizada no lado leste acabou em 2010, ano de fundação da Apiwa.
Cecília é ex-presidente e uma das fundadoras da Apiwa. “Eu não via as mulheres participando. A voz era só dos homens. Isso me deixava triste”. Isso mudou em 2017, quando Cecília e outras mulheres do território fundaram a Amiwa. De acordo com Cecília, a pauta do colapso climático e ambiental vem ganhando força entre as mulheres. “Aqui as mulheres é que são responsáveis pela roça. E nós todas estamos sentindo as mudanças climáticas e como elas afetam nosso dia a dia. Isso nos preocupa bastante”. O lado leste conta também com a Ajiwa (Articulação dos Jovens Indígenas Waiana e Aparai).
“Cada vez mais, vemos a participação de outros públicos na assembleia, para além dos caciques”, conta Denise. “Quanto mais as mulheres e jovens participam, mais eles desenvolvem esse senso de organização política, criando suas próprias articulações”.
“Uma coisa é ler sobre um território, outra coisa é pisar nele. Não tem nada melhor que ouvir as demandas indígenas dos próprios indígenas. Fiquei impressionada com o nível de organização e com o trabalho da Apiwa”, Julia Bayer, coordenadora sênior de programas da LLF.
Dois lados da mesma terra – e da mesma luta
Segundo Denise, o papel do Iepé na realização das assembleias anuais é “apoiar e assessorar o que a organização precisa, tanto em termos de programação da assembleia quanto a logística e a parte orçamentária”.
Toda assembleia indígena é uma façanha logística, mas cada lado do território tem suas particularidades. Na assembleia da Apiwa, a questão do transporte é um pouco menos complexa do que no lado oeste, já que aqui a maioria das aldeias se localiza ao longo do rio Paru D’Este, inclusive a aldeia Bona, que sempre sedia as assembleias. A maioria das pessoas, portanto, chega por canoa. Mesmo assim, todo combustível necessário precisa chegar no território por via aérea, assim como todos os demais insumos necessários, além dos próprios convidados. Tudo isso encarece muito, não apenas as assembleias, mas toda e qualquer ação seja no Tumucumaque Leste, seja no Oeste.
Se por um lado a menor demanda por frete aéreo no lado leste simplifica e até diminui um pouco a logística dos transportes, por outro lado há o colapso climático: muitos indígenas não conseguiram comparecer à assembleia por causa do baixíssimo nível dos rios da região. Um pouco mais de 80 indígenas estavam presentes, um número relevante, mas que poderia ser ainda maior. “Todo ano os rios secam, mas esse ano secaram mais”, relata Arinaware.
Outra diferença importante entre os dois lados da TI Parque do Tumucumaque é a quantidade de aldeias. O lado oeste, da Apitikatxi, possui cerca de 50, sendo que metade são micro aldeias que estão no entorno da Missão Tiriyó. Já no lado leste, são cerca de 25 aldeias.
Apesar de estarem há centenas de quilômetros de distância, os lados leste e oeste fizeram a escolha deliberada de se unificar politicamente. Ambos os lados compartilham o mesmo PGTA, o mesmo Protocolo de Consulta Livre Prévia e Informada – e agora o mesmo fundo indígena, o Pakará.
Não é à toa que a imagem escolhida pelos indígenas para simbolizar o território é a arraia – o olho esquerdo representando o lado oeste e o olho direito o lado leste. Os dois olhos mirando o mesmo objetivo, um horizonte de união e resistência indígena.
A Assembleia de 2024 da Apiwa foi financiada pela Nia Tero e LLF (Legacy Landscapes Fund).