Tão logo foi noticiada a chegada de casos de COVID-19 no Brasil, lideranças das Terras Indígenas Parque do Tumucumaque e Rio Paru d’Este, situadas na fronteira com o Suriname, no extremo norte do Pará e divisa com Amapá, demonstraram sua preocupação em relação ao perigo do alastramento da doença entre seus povos, já assolados por epidemias recente mortandades num passado não tão distante. Assim, as primeiras medidas tomadas envolveram a suspensão de todas as atividades que estavam programadas de ocorrer, incluindo a entrada e saída de pessoas moradoras e não-moradoras dessa região; e a elaboração do Plano Emergencial de Contenção da Pandemia de COVID-19 entre Povos Tarëno, por meio de uma parceria entre APITIKATXI (Associação dos Povos Indígenas Tiriyó, Katxuyana e Txikiyana), APIWA (Associação dos Povos Indígenas Wayana e Aparai), COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, EDS (Associação Expedicionários da Saúde), DSEI-ANP (Distrito Sanitário Especial Indígena do Amapá e Norte do Pará), Associação e Fraternidade São Francisco de Assis e FUNAI, dentre outros parceiros.
As ações desse Plano Emergencial distribuem-se em diferentes eixos, mobilizando parceiros governamentais e não governamentais em suas ações. São esses eixos: Ações de Infraestrutura, Monitoramento e Retorno das Moradores para suas Aldeias, Plano de Comunicação, Barreira Sanitária/Epidemiológica e Ações Humanitárias. O principal objetivo do plano é a contenção do avanço da pandemia de COVID-19 entre os povos Tarëno (Tiriyó, Katxuyana, Txikiyana, Akuriyó, Okomoyana, Wayana, Aparai, dentre outros). As constantes reuniões entre as diferentes organizações articuladas no Plano e as lideranças indígenas também têm sido um importante meio de monitorar e conter a pandemia na região.
Entre as Ações de Infraestrutura, destaca-se a instalação de UAPIs (Unidade de Atendimento Primário Indígena) na região (aldeias Missão Tiriyó e Bona). A partir das articulações das entidades acima mencionadas com Expedicionários da Saúde, dentre outros parceiros, essas unidades foram implementadas nas principais aldeias de cada região do Amapá e norte do Pará. Garantindo atendimento para casos de baixa e média complexidade, as UAPIs visam não apenas o socorro rápido para eventuais urgências, mas também diminuição do fluxo de viagens para as cidades que costumam atender aos povos indígenas da região. As UAPIs contam com cilindros e concentradores de oxigênio, testes e medicamentos. Outras ações de Infraestrutura apoiadas pelo plano são: instalação de internet nas principais aldeias da região e garantia da cobertura de radiofonia em todas as aldeias. Já foram doados 12 motores de popa e também 12 voadeiras para o atendimento volante nas aldeias por parte da equipe de Saúde Indígena do DSEI-ANP . É também intenção desse Plano poder apoiar um projeto comunitário de energia solar e de saneamento, básicos para todas as aldeias, bem como, em parceria com o DSEI-ANP contribuir para melhorias imediatas na infraestrutura de 12 postos de saúde.
O retorno dos habitantes das Terras Indígenas Parque do Tumucumaque e Rio Paru d’Este que se encontravam em Macapá no momento da pandemia é visto como uma das ações mais importantes do Plano. Esse retorno foi possível pela articulação das Associações indígenas APIWA e APITIKATXI com Iepé, Funai, MPE e DSEI-ANP. Entendendo que permanecer na cidade de Macapá apresentava riscos maiores à população indígena e seguindo protocolos de isolamento e testagens, foi possível realizar o retorno de mais de 60 pessoas que se encontravam na cidade para resolver as mais diferentes pendências no momento de anúncio da pandemia. Durante o processo para a realização desse retorno, as associações indígenas se mobilizaram junto ao Iepé para a produção de diagnóstico sobre a presença de moradores das TIs em Macapá. Esse diagnóstico, bem como a constante articulação com o DSEI-ANP permitiram a produção de 10 Boletins Informativos sobre casos confirmados e óbitos nas TIs e em Macapá. Produzidos nas línguas portuguesa e inglesa, os boletins também circularam entre organizações parceiras no Suriname.
O Plano de Comunicação vinculado ao Plano Emergencial, por sua vez, visa a produção e a circulação de materiais informativos acessíveis nas línguas indígenas, bem como a troca constante de informações entre quem está nas terras indígenas e quem está fora delas, envolvendo de modo crescente povos e organizações do lado surinamês da fronteira. Até o momento, foram produzidos cards, posters, podcast, animação e cartilha. Esses materiais informam sobre o que é o coronavírus/COVID-19, principais modos de se prevenir da doença, seus sintomas, situação atual da doença na região e entre povos indígenas no Brasil, bem como o que fazer em caso de contágio. O destaque nos materiais é sobre a importância de se permanecer nas próprias aldeias nesse momento. As versões digitais desses materiais podem ser encontradas na biblioteca organizada pela Rede Infovid (https://bit.ly/2Z6mtBN), que acompanhou a elaboração dos mesmos. A animação Epatakafa Korona: Tiwarë Ehtë Patapo (Fora Corona: Cuidados na Aldeia) também está disponível na página da iniciativa Mirando Mundos Possíveis, da Rede CineFlecha de Cinema Indígena: https://redecineflecha.org/mirando-mundos-possiveis/
As ações do Plano de Comunicação também integram de modo fundamental a Barreira Sanitária e Epidemiológica, afinal mais do que barreiras físicas – não condizentes com a realidade local – o foco desse eixo é alertar sobre as implicações dos fluxos dentro e fora das terras indígenas (entre aldeias, cidade-aldeia, entre países), visando sua diminuição neste momento de pandemia. Neste sentido, placas de zinco com informações (nas línguas tiriyó e wayana) sobre prevenção e situação do coronavírus na região estão sendo fixadas em locais estratégicos dos caminhos entre as aldeias dos dois países. Também está em andamento a produção de um vídeo com depoimentos de chefes de aldeias e outras lideranças, tanto do lado brasileiro quanto surinamês, alertando sobre a necessidade de não se baixar a guarda na proteção territorial, mesmo sendo fundamental evitar a circulação entre aldeias, países e dentro e fora das terras indígenas neste momento. Isso porque mesmo com todas as recomendações internacionais de segurança para o recrudescimento da pandemia de COVID-19, as ameaças de garimpos ilegais e empreendimentos que ameaçam a autonomia dos povos indígenas não cessam de rondar os diferentes contextos.
Ações humanitárias têm oferecido apoio em diversas frentes tanto para as pessoas que se encontram nas terras indígenas quanto para aquelas que ainda não haviam conseguido realizar esse retorno. Máscaras, kits de higiene (desinfetante, detergente, cremes dentais), utensílios para uso individualizado e cestas básicas integram materiais que foram disponibilizados por diversos parceiros, UNICEF, Diocese de Óbidos e Fundo Brasil de Direitos Humanos. APITIKATXI, APIWA, COIAB e Iepé mantendo-se articulados com DSEI-ANP para que todas as doações pudessem chegar a seus destinatários.
Cabe dizer que a incidência de casos confirmados nas Terras Indígenas Parque do Tumucumaque e Rio Paru d’Este é alta (974 casos confirmados para uma população de cerca de 3 mil pessoas). Mas com apenas 2 óbitos, e com medidas de contenção em andamento para que esse cenário melhore cada vez mais. Além das recomendações veiculadas pelo Plano de Comunicação, os povos indígenas têm feito uso de suas estratégias próprias, como o isolamento social e uso de plantas medicinais. O que se percebe com clareza é que boas parcerias e ações colaborativas são o que sustentam a garantia dos direitos dos povos indígenas. A idealização e implementação de todo esse Plano aqui mencionado demonstra isso: apenas com a constante e boa articulação entre lideranças, aldeias e parceiros é que tem sido possível conquistas antes não-imaginadas.
Entre outros apoios o Plano de Enfrentamento à Covid tem recebido apoio da Nia Tero, Rainforest Foundation Norway e da Embaixada da França e da Noruega no Brasil,