Um novo estudo realizado no Amapá confirma a grave contaminação pelo mercúrio usado nos garimpos. Todos os peixes analisados na pesquisa apresentaram níveis detectáveis de mercúrio e 28,7% excederam o limiar de mercúrio da Organização Mundial da Saúde para consumo humano. Porém, quatro das sete espécies com as maiores concentrações de mercúrio estão entre as mais consumidas na região: o nível mais alto foi detectado em Boulengerella cuvieri (pirapucu), seguido por Cichla monoculus (tucunaré) e Hoplias aimara (traírão) – todas carnívoras. Como predadores, os peixes carnívoros bioacumulam grandes quantidades de mercúrio ao longo de seu ciclo de vida.
As coletas foram realizadas pelo Iepé, ICMBio, Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (IEPA) e WWF e analisada com ajuda da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). o estudo foi publicado na Revista Internacional de Pesquisa Ambiental e Saúde Pública.
Este é o primeiro estudo com recomendações claras para reduzir a exposição ao mercúrio através do consumo de peixe no Estado do Amapá. A proposta dos pesquisadores é que o consumo das espécies de peixes carnívoros não exceda 200 gramas por semana, com atenção especial ao consumo de mandubé, pirapucu, tucunaré e trairão, que devem ser ingeridos uma vez por mês. “O estudo traz dados contundentes sobre o nível de destruição que o garimpo do ouro está promovendo na Amazônia. Já tínhamos noção do quanto o garimpo destrói a floresta. Agora, temos mais evidências do quanto ele também destrói a saúde das pessoas que vivem na floresta. Consumidores de ouro em todo o mundo precisam entender que estão adquirindo um metal que está ameaçando a vida de pessoas inocentes. O poder público precisa urgentemente assumir sua responsabilidade de garantir segurança alimentar para as populações locais, que tradicionalmente dependem dos peixes como principal fonte de proteína, afirma Marcelo Oliveira, especialista de Conservação do WWF-Brasil.
A pesquisadora Sandra Hacon, da Ensp/Fiocruz, destaca três vertentes do estudo. “Além de orientar a população a não ultrapassar o consumo semanal de 200 gramas dos peixes carnívoros, estimulamos a ingestão de outras espécies e alimentos, já que a biodiversidade da região é fantástica. O estudo também alerta para a destruição provocada pelo garimpo e recomenda que o poder público assuma a responsabilidade de garantir a segurança alimentar das populações locais.”
O garimpo, geralmente organizado em redes ilegais, é a principal fonte de emissões, contaminação e consumo de mercúrio na América Latina e no Caribe. No norte da Amazônia brasileira, o garimpo contaminou o meio ambiente e as pessoas ao longo do século passado.
Tais atividades se expandiram significativamente na Amazônia nas últimas duas décadas, consolidando-se como uma das principais causas de desmatamento e degradação de habitats no norte da Amazônia brasileira, particularmente nas fronteiras entre Guiana, Guiana Francesa, Suriname e Venezuela e os estados brasileiros de Roraima, Amapá e Pará.
Essa situação foi exacerbada pelo aumento global do preço do ouro, que impulsionou a expansão dos garimpos na Amazônia e ameaça ainda mais o meio ambiente e os direitos humanos das comunidades locais.
É esse tipo de mineração, invariavelmente ilegal, que expõe à contaminação comunidades tradicionais que dependem dos recursos naturais para sua sobrevivência, afetando adversamente a saúde das comunidades ribeirinhas e particularmente os indígenas. Para Décio Yokota, coordenador Executivo Adjunto do Iepé, “esses resultados são especialmente preocupantes para os povos indígenas e demais comunidades tradicionais da região, que tem o peixe como praticamente sua única fonte de proteína por grande parte do ano. Essas comunidades consomem peixes, muitas vezes, em todas as refeições o que aumenta consideravelmente a exposição a esse contaminante. Além das degradação ambiental e contaminação por mercúrio, os garimpos também trazer para perto das comunidades tráfico de drogas, armas, prostituição e ameaças a lideranças. Durante a quarentena, as comunidades estão especialmente preocupadas com o inchaço dos garimpos, resultado da crise econômica pois se tornam um vetor de contaminação pelo vírus nas aldeias, mesmo nos lugares mais isolados”.
Jorge Souza, Diretor-Presidente do IEPA ressalta a importância do estudo para a população amapaense – “agora, temos uma indicação de como a população amapaense deve se comportar com relação ao consumo de peixes contaminados a fim de evitar ou minimizar os danos causados à sua saúde para garantir um bom acesso ao nosso recurso pesqueiro, tão importante para o nosso Estado.” afirma.
Na Amazônia brasileira, povos indígenas, comunidades ribeirinhas, pescadores, quilombolas, camponeses e extrativistas habitam áreas próximas a rios, baías e igarapés – portanto, são altamente expostos a compostos que contêm mercúrio. Essa realidade é agravada pela vulnerabilidade social dessas comunidades, incluindo acesso reduzido aos cuidados de saúde, educação formal, renda regular, saneamento básico e água potável. Além disso, essas comunidades sofrem com altas taxas de desnutrição, principalmente em crianças menores de 5 anos. O estudo indicou ainda que maior risco de contaminação por mercúrio foi observado em crianças na zona interior.
Outro fator que pode influenciar significativamente os níveis de mercúrio nos ecossistemas aquáticos da Amazônia é a erosão, que mobiliza o mercúrio acumulado nos solos. Consequentemente, os esforços para reduzir a exposição ao mercúrio também devem abordar a erosão do solo, com um foco particular em rios e igarapés vulneráveis nas florestas ripárias. Além disso, as mudanças na cobertura / uso da terra levam a frequentes incêndios florestais, que liberam grandes quantidades de mercúrio na atmosfera e nos sistemas aquáticos. Essas questões requerem vontade política para implementar políticas eficazes para reduzir os fatores de desmatamento na Amazônia.
Sobre o estudo
O estudo, que teve como objetivo avaliar os potenciais riscos toxicológicos à saúde causados pelo consumo de peixes contaminados por mercúrio, foi realizado em cinco regiões do Estado do Amapá, incluindo algumas das bacias hidrográficas mais biodiversas e economicamente significativas da região, sempre em áreas protegidas e conservadas, incluindo a maior reserva natural do Brasil (Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque). Foram escolhidos rios que faziam fronteira com áreas protegidas devido à maior ocorrência de depósitos minerais e maior número de locais de garimpo.
Esses locais foram identificados com base em mapas de desmatamento de mineração de ouro, revisões de literatura, presença de comunidades locais, influência de marés costeiras ou águas interiores, logística de amostragem, distância a áreas protegidas e entrevistas com gerentes de áreas protegidas e locais com conhecimento da história regional da mineração de ouro.
Foram amostrados 428 peixes de 18 locais nos sistemas aquáticos terrestres e costeiros entre agosto de 2017 e maio de 2018. Os peixes foram capturados por pescadores locais contratados para apoiar o projeto de pesquisa. De acordo com os pescadores locais, cada espécie de peixe foi capturada usando equipamentos específicos. Cada amostra foi identificada ao nível da espécie e um mínimo de 70 g de tecido muscular (livre de pele) foi extraído da região dorsal do corpo do peixe. Todas as ferramentas de dissecção foram esterilizadas antes da amostragem para evitar contaminação. As amostras foram armazenadas em caixas de gelo e congeladas para transporte ao laboratório. O estudo foi realizado de acordo com a regulamentação brasileira (IN 03/2014), sob a licença SISBIO 58296-1.
A concentração de mercúrio nos peixes coletados excedeu o limite de segurança em 77,6% dos carnívoros, 20% dos onívoros e 2,4% dos herbívoros.