Texto: Thaís Herrero
O jabuti é um animal que representa a resistência para os povos indígenas. Ele sobrevive dias e dias sem água ou comida, e com seu caminhar lento é capaz de chegar muito longe. Esse já seria motivo suficiente para que o animal se tornasse um símbolo, mas os povos indígenas deste território situado ao Noroeste do Pará, e divisas com Amazonas e Roraima, foram além. E enxergaram no casco do jabuti uma semelhança com seus territórios: o casco é formado por um mosaico de partes que, unidas, lado a lado, se tornam um escudo de proteção ao jabuti. Da mesma forma, suas terras indígenas vizinhas entre si formam o complexo de 7 milhões de hectares chamado Território Wayamu.
“Demos o nome de Wayamu para o território de um povo que é resistente na luta, principalmente quando se trata dos interesses comuns de todos”, explicou João Batista Oliveira, do povo Waiwai e membro da Coordenação Técnica Regional da Funai em Oriximiná (PA).
Segundo Encontro da União do Território Wayamu entre 9 e 14 de novembro, em Santarém (PA). Cerca de 400 lideranças de mais de 60 aldeias do território estiveram reunidas. Entre elas, caciques homens e mulheres, jovens e representantes de sete associações locais das três Terras Indígenas: Kaxuyana-Tunayana, Trombetas-Mapuera, Nhamundá-Mapuera, e das aldeias na região do baixo curso do rio Jatapu, área reivindicada como Terra Indígena Ararà.
Também estiveram presentes, como parte dos vizinhos e parceiros do Wayamu, lideranças das Terras Indígenas Waimiri-Atroari, WaiWai, Parque do Tumucumaque e Rio Paru D’Este, e cinco de suas associações representativas, além de representantes da Funai, Organizações Indígenas do Suriname, da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), representantes da Nia Tero e assessores do Iepé .
Tanto a abertura quanto o encerramento do Encontro foram transmitidos ao vivo pelo Youtube do Iepé e estão disponíveis na plataforma. Confira aqui.
Para Angela Amanakwa Kaxuyana, integrante da AIKATUK, o evento foi marcado pela emoção pois muitos dos parentes não se viam desde antes da pandemia. “Esse encontro é a união de vários povos e um reencontro de familiares para que possamos dialogar sobre as nossas vidas e a proteção de nosso território comum”, disse.
“Este é um momento de deixar claro que nós, povos indígenas, estamos vigilantes de forma constante para proteger nosso território contra qualquer invasão e ação que possa prejudicar a vida de nossas crianças, que são nosso futuro”, concluiu Angela.
O objetivo do encontro foi reunir o máximo possível de representantes de aldeias e povos para construir de forma participativa como se dará a governança e a proteção do Território Wayamu a partir da ideia da união entre as terras indígenas que o compõem. Por conta da amplitude regional essa articulação é fundamental para que todos os povos sejam incluídos nas instâncias de decisão, e para que todas as regiões contribuam para o fortalecimento da proteção deste amplo território.
José Maria Warakari destacou que a defesa do território é crucial para a garantia do bem viver hoje e no futuro. “É da terra que tiramos nosso sustento e por isso que defendemos ela. Para que não seja invadida. Nesse sentido, queremos incentivar nossos jovens porque mais tarde são eles que vão precisar proteger a terra para os filhos e netos deles”, disse. José Maria é do povo Waimiri Atroari, que é um dos povos amigos do Território Wayamu.
Participação do Ministério Público Federal
Entre os convidados parceiros, estiveram no encontro os três Procuradores da República representantes do Ministério Público Federal (MPF) que possuem atuação neste território: Gustavo Kenner Alcântara, procurador em Santarém (PA), Luiz Paulo Paciornik, procurador do MPF no Amazonas, Alisson Marugal, procurador de Roraima, e Daniel Sanches, assessor do MPF no Pará.
Eles ouviram as demandas dos povos indígenas e falaram sobre a importância de contar com o MPF como um aliado na proteção dos territórios, inclusive para fazer denúncias de ilegalidades dentro das Terras Indígenas, como garimpo e outras invasões. “O MPF tem o dever de trabalhar pelos direitos dos indígenas. Não à frente e nem atrás, mas ao lado dos povos. Trabalhamos junto às leis para garantir seus direitos e a proteção dos territórios, e também atuamos para que não haja inércia na homologação das Terras Indígenas, como está acontecendo na TI Kaxuyana-Tunayana”, disse Gustavo Alcântara em sua apresentação.
Ele destacou que já fez um pedido à Justiça cobrando a conclusão do processo desta Terra Indígena, que está parado desde 2018. “Precisamos também fortalecer todo o Território Wayamu com sistemas de vigilância, com contato com demais órgãos de controle e, assim, garantir que qualquer invasor seja denunciado”, disse.
O que é o Território Wayamu O núcleo do território Wayamu é formado pelas Terras Indígenas Nhamundá-Mapuera, Trombetas-Mapuera e Kaxuyana-Tunayana, e por aldeias em território de ocupação tradicional no baixo curso do rio Jatapu, reivindicado como Terra Indígena Ararà. Essas terras entre o noroeste do Pará, o nordeste do Amazonas e o sudeste de Roraima, são todas emendadas entre si e formam um grande complexo territorial cercado por áreas protegidas e próximos a outras terras indígenas, com povos parceiros e/ou aparentados entre si, com vínculos muito antigos. A região é de suma importância por ser uma das áreas mais protegidas da Amazônia até hoje. Neste grande corredor de povos em sua maioria de língua Karib vivem mais de 20 yanas (como eles se denominam), entre eles os Hexkaryana, Wai Wai, Kahyana, Katxuyana, Inkarïyana, Yatxkuryana, Katwena, Tunayana, Xerew, Parukwoto, Mawayana, Txikyana, Xowyana, Mînpoyana, Caruma, Karapawyana, Kararayana, Yukwariyana, Okoymoyana. Há também registros de povos isolados. Confira o mapa da região |
Surgimento da União do Território Wayamu
A concepção desta união territorial e de uma governança em comum começou há cerca de oito anos, quando os povos das três TI da região estavam construindo seus Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA). As lideranças entenderam que, devido ao tamanho da área e aos fortes vínculos históricos e contemporâneos entre os seus diferentes povos, seria mais efetivo para proteção territorial e de garantia do bem viver, se eles estivessem todos unidos sob uma mesma instância de governança, que fosse representativa e participativa e se tivessem os mesmos documentos base de seus direitos. Assim, surgiram um único PGTA para o Território Wayamu e um único Protocolo de Consulta e Consentimento Livre Prévio e Informado.
“Nossa missão, enquanto Iepé, era dar o apoio à elaboração destes instrumentos, PGTA e Protocolos, sempre em cooperação com as associações indígenas locais e com a FUNAI, de forma amplamente participativa, envolvendo ao máximo não apenas algumas lideranças, mas as mulheres, jovens e moradores em geral de todas as aldeias”, contou Denise Fajardo, coordenadora do Programa Tumucumaque, do Instituto Iepé.
“Assim fizemos de 2012 até agora, sempre contando com uma parceria essencial da Fundação Moore, ao garantir as condições de possibilidade de tanto trabalho, articulações e conquistas ao longo desses anos, por parte desses povos e região, culminando com essa ideia de criação da União do Território Wayamu. Portanto, isso é algo que veio depois, ao final, não no início do processo. E foi fruto da criatividade desses povos e da riqueza dos seus pensamentos em relação ao futuro da região e de como protegê-la”, completou.
Denise explicou que esta é uma experiência inédita em que povos de Terras Indígenas vizinhas se organizam em torno da governança e gestão conjunta de um único e amplo território, assumindo que cabe a si mesmos cuidá-lo e protegê-lo para as presentes e futuras gerações. “Por estarem dentro de um corredor de unidades de conservação, também se vêem no papel de contribuir, formando um escudo de proteção, que visa conter o avanço do desmatamento e de empreendimentos econômicos que afetariam a floresta, seus territórios e modos de vida”, disse Denise.
Este Encontro teve o seu principal objetivo alcançado: a criação do Conselho Wayamu. Além disso, houve ao menos outros três resultados importantes: uma carta com demandas de apoio à defesa de seus direitos constitucionais, a articulação de um grupo inicial de jovens comunicadores e o fortalecimento da participação das mulheres na governança de seus territórios.
Conselho Deliberativo Wayamu
Dezenove lideranças foram nomeadas e empossadas como membros do Conselho que irá atuar em articulações voltadas para a governança, bem viver e proteção do Território Wayamu. O Conselho terá validade de um ano, até o próximo Encontro, previsto para novembro de 2023. Nessa ocasião, haverá uma avaliação e renovação do quadro de conselheiros, que passará a ser renomeado a cada dois anos.
“Carta Aberta dos Povos Indígenas da União do Território Wayamu”
O documento é direcionado à sociedade civil, ao MPF e à Funai e trata das principais demandas para a efetivação dos direitos dos povos sobre seus territórios, sua autonomia e seu direito à vida. Entre os destaque estão o reconhecimento oficial da Terra Indígena Ararà, a expulsão imediata de invasores e a fiscalização constante de atividades ilegais no Território Wayamu, a proteção dos povos em isolamento voluntário na região e o fortalecimento da Funai e investimentos em saúde e educação. Confira a carta na íntegra aqui.
Rede de jovens comunicadores
Os 21 jovens, presentes no Encontro, aproveitaram a oportunidade juntos e participaram de uma oficina sobre comunicação de forma a pensar como colaborar com a gestão de seus territórios por meio da comunicação interna e externa.
Os “filhotes do wayamu”, como se chamaram, contaram com os conhecimentos de Sikuny Kaxuyana, que é da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana e já foi capacitada como jovem comunicadora pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), e de Neto Ramos, profissional de comunicação indígena. Eles levaram aos parentes oficinas práticas sobre entrevistas, fotos e vídeos e falaram da importância da comunicação nas aldeias.
Lucila Xwarye, do povo Hexkaryana, conta que foi a primeira vez que se reuniu com outros parentes para aprender as ferramentas da comunicação. “Durante esses dois dias de oficina, a gente falou muito sobre como podemos nos comunicar. Nós temos que inspirar outros parentes sobre como estamos nos organizando no Território Wayamu. E temos que ajudar nossos líderes porque nós somos o futuro. Esse aprendizado foi só o começo, mas foi importante. Nós precisamos trabalhar em conjunto, para ajudar nossos territórios e nossos caciques para termos um futuro melhor”, disse.
Articulação das mulheres
A gestão participativa, tão valorizada pelos povos do Wayamu, prevê a presença das mulheres nas instâncias de decisão. Várias lideranças femininas presentes no encontro falaram sobre a importância de estarem ali para pensar juntas na proteção do território.
A maioria das mulheres teve a oportunidade de se conhecer ao longo dos seis dias e trocar experiências, dialogando sobre assuntos em comum, sobre seus trabalhos com artesanato, por exemplo, e construindo articulações para fortalecer a união do Território.
Uma das lideranças mulheres presentes, Ana Kahyana, destaca que entre os povos do Wayamu é preciso valorizar a diversidade e esquecer as diferenças em si. “Nosso território não é uma simples marcação de mapa. É uma região de vida, um bloco de muita biodiversidade e essa vida não é só humana. Nossa água, por exemplo, é vida. E o que os brancos chamam de terra é a nossa força, a força dos nossos filhos e netos. E vamos deixar para eles essas terras”, disse. Ana é do povo Kahyana, e cacica da aldeia Purho Mitï, na Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana.