Texto: Marcelo Domingues e Moises Sedo*
O Museu Kuahi dos Povos Indígenas do Oiapoque foi fundado em 2007, vinculado à Secretaria de Cultura do Estado do Amapá (SECULT) e o início de sua história foi marcado pela visita dos primeiros servidores a um outro museu de referência. Em 2006, a primeira turma de técnicos indígenas, que estava em formação, visitou o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), em Belém (PA). Dezoito anos depois, em 2024, a nova equipe de servidores indígenas do Museu Kuahi, que está prestes a reabrir, foi a Belém para uma semana de formação técnica.
Para Tereza Jeanjaque, do povo Galibi Kali’na, presente nas duas visitas, a experiência foi diferente. “Na primeira vez, não participamos das visitas em outras exposições. Retomar a formação com esse novo olhar e conhecer os objetos da reserva técnica e como eles trabalham atualmente foi muito importante para mim”, disse.
Pioneirismo do Museu Kuahi
O Museu Kuahi tem sido um catalisador no fortalecimento de pesquisadores indígenas que, por meio de pesquisas nas aldeias, contribuíram para a constituição do acervo e para a concepção de suas exposições, além de gerarem diversas publicações.
O museu foi pioneiro por ser um dos primeiros museus indígenas do Brasil. E representa uma iniciativa significativa para repensar a relação entre as políticas públicas culturais e as iniciativas decoloniais promovidas pelos povos indígenas.
Oficina de museologia
A oficina “Museologia Prática”, que ocorreu de 04 a 08 de novembro no Campus de Pesquisa do MPEG, foi fruto da parceria entre a SECULT do Amapá e o Instituto Iepé. Foram realizadas ações de formação, fortalecimento cultural e valorização do patrimônio da cultura material e imaterial dos povos indígenas do Oiapoque.
Para a diretora do Museu Kuahi, Kassia Lod, do povo Galibi Kali’na, a oficina foi uma oportunidade de conhecer a reserva técnica etnológica, arqueológica e a reserva técnica linguística. “Vimos a diversidade de materiais com que esses espaços trabalham, e a importância da manutenção e preservação desses acervos”, contou.
As atividades foram conduzidas pela museóloga e antropóloga Lucia Hussak Van Velthem, curadora adjunta da Coleção Etnográfica da instituição e vice-presidente do Iepé, e pela cientista social Suzana Primo dos Santos, do povo Karipuna, acompanhada pela equipe da Reserva Técnica Curt Nimuendajú, da Coordenação de Ciências Humanas, Fábio Jacob, Jemilly Mendes e Leonardo Souza.
Importância da conservação dos acervos
Os primeiros dias de oficina no Museu Goeldi foram dedicados à conservação de acervos etnográficos, visitas a exposições, discussões sobre estratégias de práticas em museologias e ao trabalho da instituição na salvaguarda do acervo etnográfico na Reserva Técnica Curt Nimuendajú. O acervo conta com uma rica coleção de objetos, registros e documentos que refletem a diversidade cultural dos povos indígenas da Amazônia.
O nome da reserva técnica é referente ao alemão Curt Nimuendajú, considerado um dos fundadores da etnologia brasileira e o primeiro a organizar a coleção etnográfica da instituição em 1920, seguido por Eduardo Galvão em 1955, e Ivelise Rodrigues em 1985. O acervo da coleção é tombado desde 1940 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
“A importância de preservar essas peças por tantos anos é que hoje podemos fazer pesquisas a partir delas. No futuro, elas poderão servir para nossos filhos e netos conhecerem os artefatos que eram usados por nosso povo”, disse o coordenador do Museu Kuahi, Glinaldo Macial, do povo Galibi Marworno.
Já Edson Anika, do povo Karipuna, destacou a reserva técnica do Museu Goeldi como uma referência em preservação de acervos dos povos indígenas. “Eles usam material e equipamentos de boa qualidade, é o que faz uma diferença na conservação das peças”, conclui.
Diversidades Amazônicas
Na visita ao Parque Zoobotânico chamou a atenção a exposição “Diversidades Amazônicas”, fruto de discussão com representantes de todos os departamentos da instituição (biologia, mineralogia, paleontologia, arqueologia, botânica, zoologia, linguística e etnografia) em diálogo com representantes do setor de museologia.
Os destaques para os pontos norteadores da exposição dos objetos etnográficos, segundo Lúcia van Velthem, foi a representatividade indígena. “Foram selecionados 30 povos indígenas da Amazônia e definidos os estados (Amazonas, Amapá, Pará, Rondônia e Roraima). Em seguida, foi pensado as variadas categorias artesanais, como trançados, cerâmica, tecelagem, plumária e escultura. E por fim, uma diversidade temática como a mitologia, conhecimentos técnicos, relações sociais, práticas e rituais”, explicou.
Toda essa pesquisa foi pensada para o espaço da exposição etnográfica “Culturas” que apresenta aspectos culturais e estéticos das populações indígenas e tradicionais, do presente e do passado da Amazônia.
“Visitamos a exposição de peças dos povos indígenas do Oiapoque no Museu Goeldi e me senti representada. Senti como é importante as culturas indígenas, assim como nossas histórias e conhecimentos estarem ali destacados”, relata Kassia Lod. Na apresentação dos objetos dos povos indígenas do Oiapoque, os artefatos expostos estão conectados ao ritual do Turé e ao mundo dos karuãnas, seres invisíveis que vivem no outro mundo, e estão presentes no ritual como retribuição às curas realizadas por meio dos pajés.
Os artefatos apresentados na exposição trazem os grafismos kuahi (peixe), warukamã (Estrela D’alva) e a cobra-grande (sucuri), grafismos com forte referência à cosmologia dos povos indígenas do Oiapoque.
As atividades da oficina também ocorreram no Museu de Arte de Belém, Museu do Estado, Casa das Onze Janelas, Forte do Castelo, Bienal das Amazônias e Centro Histórico de Belém. Esses locais representam a riqueza cultural e histórica da capital do Pará, contribuindo para a preservação da memória e da identidade amazônica.
Para Edson Anika, “das exposições que visitamos em Belém, o que chamou muita a atenção foi que em todas as instituições falavam um pouco dos povos indígenas, falavam sobre a cultura dos paraenses e a cultura dos povos indígenas da Amazônia”, conclui.
Retorno para o Oiapoque: aprender e multiplicar conhecimento
O comunicador e servidor do Museu Kuahi, Moisés Sedo, do povo Palikur, explicou sua experiência: “Em cada trajeto da viagem procurei fazer os registros, além da entrevista com a Lúcia Van Velthem, Suzana Karipuna e sua equipe. Tive essa oportunidade de entrevistar essas pessoas que têm uma longa trajetória na museologia. Espero que a gente possa se ver, se reconhecer e adquirir esses conhecimentos e trazer para a prática das atividades do Museu Kuahi”.
“A gente volta com muitas ideias e experiências. Ocorreu muitas trocas entre nossos conhecimentos tradicionais e o conhecimento técnico científico do Museu Goeldi. Vamos tentar aplicar essas experiências dentro de nossa realidade. A intenção é fazer que nosso ambiente melhore e se torne adequado. A ideia é essa, aprender e multiplicar esse conhecimento para que mais tarde outras pessoas que venham trabalhar aqui possam conhecer e aperfeiçoar”, conclui Kassia Lod.
A oficina foi a primeira de uma série de atividades de qualificação da nova equipe de servidores do Museu Kuahi. A proposta é continuar a parceria e diálogo entre as instituições, com atividades teóricas e práticas, condensadas na realização de oficinas e visitas técnicas em museus pelo Brasil, promovendo uma reflexão sobre o caminho já percorrido e sobre as inspirações futuras para a reinauguração do Museu Kuahi.
*Texto: Marcelo Domingues (Instituto Iepé). Entrevistas: Moisés Sedo (Museu Kuahi). Revisão: Rita Lewkowicz, Lucia Hussak Van Velthem e Thaís Herrero.