Texto: João Bourroul
Carro, moto, canoa, avião… Os mais de 100 indígenas que se reuniram na Assembleia da Apitikatxi chegaram dos mais variados lugares e através das mais diferentes formas de transporte. Mas com o mesmo objetivo: compartilhar os desafios e as conquistas do ano que passou e projetar os avanços do ano que chega.
“A Assembleia reúne angústias e indignações, mas também serve para informar e propor soluções”, explica Aventino Nakai Tiriyó Kaxuyana, presidente da Apitikatxi (Associação dos Povos Indígenas Tiriyo, Katxuyana e Txikiyana). A Assembleia de 2024 marca os 20 anos de criação da associação.
A Assembleia, que ocorre anualmente, neste ano foi realizada entre os dias 28 de outubro e 1º de novembro na aldeia Missão Tiriyó, no lado oeste da Terra Indígena Parque do Tumucumaque.
Também estiveram presentes em torno de 20 não indígenas representando três secretarias de estado do Amapá e Pará (Povos Indígenas, Educação e Saúde), Ideflor-Bio, além dos financiadores, Nia Tero, Legacy Landscapes Fund (LLF) e KfW. O Instituto Iepé, que apoiou a Apitikatxi na organização do evento, também marcou presença com diversos colaboradores.
Essa foi a primeira vez que a Assembleia da Apitikatxi contou com tradução simultânea, uma inovação que deixa as conversas e apresentações mais fluidas e faz com que um número maior de pautas sejam abordadas por conta do tempo economizado ao não haver traduções depois de cada fala.
Denise Fajardo, coordenadora do programa Tumucumaque-Wayamu, do Iepé, lembra de como as assembleias da Apitikatxi foram se transformando ao longo do tempo. “Nos dois primeiros anos eram encontros menores, só participavam os caciques por conta do custo altíssimo que envolve a logística de transporte no território”, lembra.
Durante essas reuniões entre lideranças, surgiu a necessidade de fazer uma assembleia geral mais ampla. Desde 2007, elas acontecem todo ano sem exceção, inclusive durante a pandemia de covid-19. “Aqueles primeiros encontros foram os embriões das discussões que levaram a construção do PGTA do Tumucumaque”, afirma a coordenadora.
Os dois primeiros dias do evento foram de discussões internas, focadas principalmente em questões de governança. Aventino conta que, apesar de outros temas naturalmente surgirem durante as conversas e apresentações, a Assembleia necessariamente aborda os seis eixos temáticos do PGTA (Plano de Gestão Territorial e Ambiental): educação, saúde, proteção territorial, cultura, governança e o manejo sustentável de recursos.
O colapso climático e ambiental, normalmente colocado como uma ameaça futura por não indígenas, é parte do dia a dia dos habitantes do Tumucumaque. “Aqui as mudanças climáticas já chegaram. Temos perdido roças e os rios estão secando antes da hora. A gente precisa discutir isso”, alerta Aventino.
A partir do terceiro dia, a assembleia é aberta para convidados externos. Um deles foi André Matsubara, coordenador de salvaguardas socioambientais da LLF. “Só é possível compreender totalmente um território quando saímos da teoria e vamos para a prática. Na assembleia da Apitikatxi foi muito interessante presenciar uma grande quantidade de lideranças reunidas discutindo de uma forma eficiente, mas também respeitosa com seus modos de viver”.
Já para o gerente de projetos da KfW, Marcus Stewen, a assembleia demonstra o poder de auto gestão dos indígenas. “Do ponto de vista do financiador, é maravilhoso ver os indígenas gerindo seu território. Não é alguém de fora dizendo o que eles devem fazer. Eles têm a disposição e a capacidade de fazer isso por conta própria”.
Uma pauta importante da Assembleia foi o Fundo Pakará, uma reserva financeira própria dos indígenas do Parque do Tumucumaque. Os recursos do fundo serão utilizados para que os objetivos traçados no PGTA sejam concretizados. “Nossa região é isolada e o acesso ao nosso território é caro. Temos que correr atrás de ter recursos próprios: não podemos correr o risco de um financiador sair e a gente ficar sem nenhum tipo de apoio”, diz Aventino. Durante a Assembleia o regimento interno do Fundo Pakará foi aprovado – a expectativa é que ele passe a funcionar já em 2025.
“Desde o início, a gente vem acompanhando o Pakará, esse fundo de apoio à implementação de atividades do PGTA, criado pelas associações e que hoje está hospedado no Iepé. Para a Nia Tero, essa assembleia é vista com muito bons olhos, pois marca mais um passo dado em relação ao Pakará”, explica Felippe de Rosa Miranda, líder de programa para estratégia de fortalecimento institucional da iniciativa Amazônia da Nia Tero.
Denise reforça outro aspecto fundamental das assembleias: a inclusão de jovens e mulheres nas articulações coletivas do território. “As mulheres focam mais no fortalecimento do seu papel na governança política e econômica, e os jovens em comunicação e proteção territorial”, conta. Sendo o aprendizado do uso de drones um fator determinante, já que esse equipamento é utilizado tanto nas oficinas de audiovisual, quanto na proteção territorial em si, por oferecer uma visão macro do território que seria impossível de observar a partir do solo.
“Nosso marco não é temporal. É ancestral!”
“Minha preocupação é que no futuro não exista mais Tiriyó, Katxuyana e Txikiyana”. A afirmação, carregada de angústia, mas também de realismo, é de Mitore Cristiana Tiriyó, vice-secretária da Apitikatxi e articuladora da Amitikatxi (Articulação das Mulheres Tiriyó, Katxuyana, Txikiyana).
Mitore é uma voz ativa na comunidade, mas nem sempre foi assim: ela conta que até 2018, ano de fundação da Amitikatxi, apenas homens participavam das assembleias. “Se é para cuidar do nosso território, nós queremos ajudar. A nossa luta é fortalecer nossa arte, nossa língua. Fortalecer o que é nosso e dos nossos ancestrais. Hoje eu sinto que os caciques e os outros homens nos ouvem e nos respeitam. Estamos juntos nessa luta”, afirma.
Enquanto a Assembleia acontecia, um grupo de 10 jovens comunicadores indígenas participava de uma oficina prática de audiovisual. Orientados pelo documentarista Fred Rahal, a turma realizou uma cobertura de fotos e vídeos do evento.
“É muito importante para mostrar quem somos nós. Aprendi que é isso que eu quero fazer da vida: ensinar os jovens a trabalhar com fotos e vídeos”, conta Jacilene Parena Kaxuyana Tiriyó, jovem comunicadora de 21 anos que vive na Missão Tiriyó.
No dia 30 pela manhã, os indígenas fizeram um protesto do lado de fora da paiman (casa de reuniões). Mulheres, jovens, idosos e homens – todos os presentes na Assembleia marcharam, dançaram e cantaram segurando cartazes contra as PEC 48 (marco temporal), PEC 36 (permissão de exploração comercial em terras indígenas) e o PL 4039 (penalização dos indígenas que lutam por suas terras). Ao final do protesto, os cartazes foram colocados ao chão. Primeiro foram alvo de uma flecha, depois foram pisoteados e, por fim, queimados.
“Nosso território está sendo atacado desde sempre. Tanto fisicamente, aqui dentro, pelos garimpeiros e fazendeiros de soja, quanto lá fora, com os políticos. Alguns projetos querem mudar a constituição, temos de estar preparados”, protesta o cacique Davi Kahyana. Um dos gritos mais ouvidos durante o protesto era: “Nosso marco não é temporal. É ancestral!”
20 anos de Apitikatxi
Em 2024 a Apitikatxi celebra 20 anos de existência e resistência. Criada pela designer e consultora do Iepé, Erica Bettiol, uma faixa com a linha do tempo da associação foi colada do lado de fora, por toda a circunferência da paiman onde ocorria a assembleia. Os inacreditáveis 63 metros de faixa registravam os principais marcos da Apitikatxi ano a ano, desde 2004.
“A Apitikatxi está chegando em sua juventude, estamos crescendo e aprendendo cada vez mais”, afirma o cacique Davi. Aventino completa com o que considera um dos principais destaques dessa trajetória de duas décadas: a criação do PGTA. “Logo no início da nossa parceria com o Iepé, percebemos que precisávamos fazer formação de lideranças e de professores. E construir um PGTA, que é o documento que abriu esse caminho de 20 anos para a gente”.
Se hoje a Assembleia reúne uma centena de indígenas vindos de vários lugares e das mais variadas formas, antes da Apitikatxi os problemas eram tratados isoladamente. “Cada cacique conhecia apenas os problemas da sua própria aldeia. A gente não sabia dos problemas coletivos que estávamos enfrentando. Com essa aproximação, nós percebemos que, no final das contas, a questão de todas as comunidades era a mesma: a proteção do nosso território. Sem nosso território protegido não tem saúde nem educação”, finaliza.
A Assembleia de 2024 da Apitikatxi contou com apoio financeiro da Nia Tero e LLF (Legacy Landscapes Fund).