Povo Katxuyana perde mais um guardião de suas memórias e conhecimentos

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Nesta semana, ao final da tarde do dia 17 de junho de 2020, com a voz rouca, num misto de tristeza e desespero, Juventino Kaxuyana anunciava em um grupo de whatsapp que seu irmão Honório, não estava mais entre nós, que acabava de partir. Juventino, irmão caçula de Honório, e dos demais, ao todo, nove irmãos. Todos filhos de Juventino Matxwaya Kaxuyana, liderança de grande prestígio no segundo quarto do século XX, na região do rio Katxuru (afluente do rio Trombetas), que inclusive define o nome e a identidade dos Katxuyana, ou Kaxuyana, como ficaram mais conhecidos, enquanto yana (gente) do katxuru.

Para quem já conhece a história desse povo, removido do Trombetas para o Tumucumaque em uma aeronave da FAB, em 1968, Honório estava nesse grupo juntamente com seus 7 irmãos, além de Juventino. E assim a vida de Honório, como a do seu povo, foi digna de uma saga, desde o dia 23 de fevereiro de 1968, “o dia mais triste de nossas vidas”, como ele e seus parentes sempre definiram essa data, quando se viram dentro de uma aeronave sendo transportados para a aldeia Missão Tiriyó, localizada próximo à fronteira com o Suriname, no Parque Indígena do Tumucumaque, deixando para trás seus pertences e suas histórias de uma hora para outra:

 “Amanhecemos na boca do rio Cuminá, o bispo de Óbidos celebrou missa lá e saímos. E aí chegamos até Óbidos. Já tinha casa preparada, e encheu, mas encheu, era gente por tudo quanto era lado. E o bispo falou: amanhã vem avião. Terá que fazer duas ou três viagens. Hoje vai um pouco, volta, vai amanhã, depois de amanhã vai o resto. E aí esperamos, eu fui de primeiro. Chegamos aqui (na Missão Tiriyó), no outro dia o avião fez logo duas viagens. O Junior (Juventino) ficou por último, ele estava meio adoentado. E aí ficamos por aqui na casa dos outros. Fiquei na casa do Raimundo Ent’si, outros ficaram na casa do Cecílio Txuruwata. E fomos ficando e ficando, mas sem jeito ainda. Tinha muita diferença, e nós ficamos sem jeito. Porque lá no Rio Cachorro tinha muita fartura, peixe, caça, tudo, castanha e aqui não. Peixe é difícil, caça é difícil. Aí até nos acostumarmos custou muito. Mas fomos aguentando. E até agora estamos vivendo aqui.” (Relato de Honório Kaxuyana na Missão Tiriyó em 26/08/1992).

Lá no Tumucumaque Honório chegou já viúvo e se casou com uma jovem Tiriyó, Maria Arensi, assim como alguns de seus irmãos e irmãs que, como dizia Honório, “nos misturamos tudo com Tiriyó”, e ali quase uma vida inteira se passou, e quase ninguém mais volta para o seu território de origem, no rio Katxuru, na aldeia Warahtxa Youkuru, não fosse o seu sonho, o mesmo de seus irmãos e demais parentes, transformado em sonho de toda uma geração virar realidade: o de voltar para o rio Katxuru, refundar Warahtxa Youkuru, hoje Aldeia Santidade, e tantas outras aldeias, que na mesma época, no final dos anos 60, haviam deixado de existir, porque seus moradores, diante de graves epidemias só encontravam assistência médica fora dali, em aldeias base de missões religiosas, no outro lado da fronteira com a Guiana e Suriname, ou no Brasil, nas aldeias Mapuera, Kassawa e Missão Tiriyó.

No entanto alguns, dentre os diversos yanas daquela região, isolando-se do contato para proteger-se, nunca saíram de lá, ali sobrevivendo até os dias de hoje em isolamento voluntário. Outros nunca pararam de por lá transitar, e de reocupar seus locais de origem, ao longo dessas 5 décadas. Um dos filhos do próprio Honório, Renato Nyonoro, se encarregou de tomar a frente em visitar a terra de origem de seu pai, no final dos anos 1990, de onde nunca mais saiu. E assim também outras lideranças tomaram à frente nessa demanda. Até que conseguissem, em 2003, formalizar o seu pedido de regularização fundiária junto à FUNAI. E finalmente, em 2018, ter a Portaria Declaratória da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana emitida pelo Ministério da Justiça.

Nesse processo de retomada do seu território tradicional, e refundação da aldeia de onde saíram em 1968, hoje chamada Santidade, Honório não teve um papel político proeminente, mas teve um papel de guardião de memórias e conhecimentos que só ele seus irmãos, irmãs e primos mais velhos dominavam. Então mesmo enquanto permanecia na Missão Tiriyó, já início dos anos 2000, Honório era muito requisitado para contar o que sabia e lembrava do passado e da cultura dos Pürehno, que é como em sua própria língua os Kaxuyana e demais yanas da região, costumam se identificar em geral, por contraposição aos outros povos Karaiwa (não-indígenas).   Mas após a morte de sua esposa Maria Arensi, na Missão Tiriyó, há cerca dos últimos 8 anos, de sua vida, Honório voltou para o rio Katxuru e desde então é por lá que novamente vivia. Até que adoentado, no início de junho, teve que ser removido para um hospital em Oriximiná, o que, nesses tempos de pandemia de Coronavirus, muito preocupou a todos, parentes e amigos próximos e distantes de Honório. A apreensão era grande, ele até deu mostras de melhora em alguns momentos, mas infelizmente, após cerca de 10 dias hospitalizado, veio a falecer nesta semana, para aumentar a tristeza de quem, como nós do Iepé o conhecíamos e admirávamos e ficamos sabendo dessa notícia em meio a tantas outras notícias de mortes e perdas de vidas de gente anônima e gente mais conhecida, que estamos vivenciando neste ano.

Como disse Angela Amanakawa, ao saber dessa notícia: “eu estou realmente estarrecida com essa perda, mas uma coisa me deixa com o coração forte, é que fizemos e estamos fazendo a nossa parte para garantir que ele e todos mais pudessem voltar para casa. Isso que nos torna mais fortes e com a sensação de estarmos no caminho certo nessa luta de retomar nossas casas e territórios. Que nossos ancestrais Kïrho’kumu recebam ele de braços abertos. Agora ele certamente está feliz pelo reencontro de muitos que ficaram na aldeia Waratxa Youkuru. Que descanse em paz e esteja conosco em espírito.”

Denise Fajardo Pereira

Coordenadora do Programa Tumucumaque do Iepé

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