Texto: Hugo Prudente | 24 de fevereiro de 2021
Depois de um plano de contingência rigoroso e eficaz, isolamento total e cuidados desde março do ano passado, o povo Zo’é, que vive no Norte do Pará, recebeu as duas doses da vacina contra a Covid-19 e comemorou que nenhum deles contraiu o novo coronavírus até hoje.
As primeiras e segundas doses da Coronavac foram aplicadas nos dias 18 de janeiro e 13 de fevereiro, administradas pelos profissionais da Sesai que atuam diretamente com esse povo. Foram vacinados 178 zo’é, o correspondente à população maior de 18 anos, excetuando-se as gestantes. O processo foi realizado cuidadosamente, evitando aproximação entre grupos familiares mais distantes. Mesmo após a vacinação, o plano de contingência será mantido e todos continuam afastados da Base da Funai, dispersos entre muitas aldeias.
Três localidades da Terra Indígena Zo’é serviram como ponto de vacinação: Baija rupa, Tapery e Manga, a pouca distância da base da Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema – FPEC/Funai, responsável pela proteção da TI. Máscaras foram disponibilizadas para os indígenas durante a vacinação e a equipe de saúde usou equipamento completo de proteção, além das máscaras, avental, touca, luvas e protetor facial. Sujeitos a maior vulnerabilidade socioepidemiológica, indígenas são prioridade para imunização. Toda a equipe de saúde que atende aos Zo’é também já está sendo imunizada.
Plano de contingência eficaz
Desde o início da pandemia, os profissionais que atuam junto aos Zo’é assumiram rigorosamente os cuidados definidos no “Protocolo de Acesso à Terra Indígena Zo’é durante a Pandemia”. O documento compõe o “Plano de Contingência para Prevenção e Combate à Covid-19 na Terra Zo’é”, que determina o estabelecimento de barreiras sanitárias no entorno e no interior da TI.
O plano também determina a realização de exames PCR, monitoramento clínico e observação de estrito isolamento antes de cada acesso e nos primeiros dias após a chegada na base, além da desinfecção de aeronaves e insumos levados para a TI e o uso de EPIs em área. A comunicação constante via rádio com as aldeias e a garantia da máxima resolução dos agravos à saúde dentro da própria Terra Indígena Zo’é são diretrizes anteriores à pandemia e se mantiveram fundamentais neste período.
O plano de contingência foi elaborado conjuntamente pela equipe do Distrito Sanitário Especial Indígena Guamá-Tocantins, DSEI-Guatoc polo Santarém e pela coordenação da FPEC/Funai, e tem em vista o disposto na Portaria Conjunta 4.094 de 20.12.2018 em que Ministério da Saúde e Funai determinam as diretrizes da atenção à saúde para povos isolados e de recente contato.
A base estabelecida na TI Zo’é conta com uma sala para procedimentos médicos de média e alta complexidade, o que permite um alto índice de resolubilidade em área, decisiva na promoção da saúde Zo’é. Por isso, no último ano, não houve remoção de nenhum paciente para Santarém. No segundo semestre de 2020 o Iepé adquiriu, com apoio da Nia Tero, um respirador, um monitor multiparamétrico digital, um aspirador cirúrgico e cilindros de oxigênio que foram doados aos Zo’é. Isso propiciou o atendimento primário em caso de infecção pelo novo coronavírus.
Essa ação integrou o “Plano Emergencial do Iepé para enfrentamento da Covid- 19 na região do Amapá e norte do Pará”, implementado em parceria com o DSEI Guatoc, DSEI Amapá e Norte do Pará, CR Macapá da Funai, FPEC/Funai, Coordenação das Associações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e organizações indígenas da região, Expedicionários da Saúde, Greenpeace. A implementação do plano de contingência contou com apoio financeiro da Nia Tero, Embaixada da França, Embaixada da Noruega e Rainforest Foundation Norway.
Os resultados positivos do povo Zo’é destoam quadro desolador a nível nacional. A não implementação de planos de contingência em inúmeras Terras Indígenas é objeto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 em que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB e seis partidos apontam ações e omissões do poder público no combate à epidemia da Covid-19 entre a população indígena.
Estratégias Zo’é de proteção
Riru, 16 anos, é um dos jovens que manteve nos últimos meses uma rotina de escrita em língua zo’é a respeito do seu cotidiano. Traduzimos um trecho do seu diário, enviado para o Programa Zo’é em julho de 2020:
“Na base da Funai, na região do Kejã, o coronavírus ainda não existe. Por enquanto estamos apenas evitando o Kejã, não vamos mesmo até lá. Longe mesmo nós permanecemos. Estamos comendo bastante macaco gordo nas regiões mais afastadas. Longe do coronavírus nós permanecemos. Então quando nossa comida acaba, nós fazemos bastante farinha. Faremos bastante mesmo, depois nos espalharemos de novo pelo Erepecuru, pela boca do igarapé Orima, pela aldeia Chumbo. É por esse rumo que nós comemos trairão. O pessoal do rio Kare também vai andar, vão pela boca do igarapé Tararin.”
O relato original, em língua zo’é, foi incluído em material de leitura elaborado pelo Programa Zo’é, do Iepé, como informativo sobre a pandemia dirigido aos jovens letrados que se encontram em formação e como reforço às diretrizes acordadas para seguir impedindo a chegada do novo coronavírus à TI. O apoio logístico do Iepé às ações de vigilância sob responsabilidade dos Zo’é e à dispersão territorial teve continuidade ao longo deste período, cumprindo-se as necessárias medidas para prevenção durante a compra e a entrega de itens relacionados à produção cotidiana e à promoção da mobilidade.
(*Foto do topo: Fábio Ribeiro)