Artistas indígenas do Oiapoque fazem sua primeira exposição

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Coletivo Waçá-wara, formado por artistas dos quatro povos do Oiapoque, apresentam seus trabalhos durante a Assembleia da Coiab no município

Texto: Marcelo Domingues
Uma imagem contendo ao ar livre, água, lago, barco

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O coletivo de artistas indígenas do Oiapoque, chamado Waçá-wara, realizou sua primeira exposição durante a assembleia da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). O evento ocorreu na Aldeia Manga na Terra Indígena Uaçá, em Oiapoque (AP), no mês de agosto de 2022.

A exposição, preparada e montada pelo coletivo, trouxe ao público a produção da arte indígena criada nos dois últimos anos na região do Oiapoque, com pinturas em tela, desenhos, cuias, esculturas, artesanatos e banners. A partir da pesquisa expográfica feita pelo coletivo, foram construídos expositores em painéis de madeira, pintados com os grafismos dos quatro povos indígenas da região. As obras foram suspensas na estrutura do painel, pensadas e arquitetadas para irem de encontro ao público. A proposta da exposição, foi valorizar os conhecimentos e práticas culturais indígenas da região, a partir de uma diversidade de artefatos e produções artísticas. 

Grupo de pessoas na rua

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A Assembleia da Coiab reuniu mais de mil pessoas entre lideranças dos estados da Amazônia Legal: Amapá, Amazonas, Maranhão, Pará, Tocantins, Acre, Roraima, Rondônia e Mato Grosso. E contou com a presença de 56 delegações dos Estados da Amazônia e seus parceiros. (Foto: Marcela Jean-Jacque/2022)

O coletivo Waçá-wara

O coletivo Waçá-wara iniciou sua formação a partir do Festival Corpus Urbis em 2017, na Terra Indígena Uaçá, e contou com 47 artistas de diferentes regiões do país. Segundo Yermollay Caripoune, do povo Karipuna, o evento foi importante para unir os artistas da região do Oiapoque. 

O principal objetivo do coletivo é o fortalecimento cultural, a visibilidade da arte indígena e a transmissão de conhecimentos, unindo os 4 povos indígenas da região, Galibi Marworno, Galibi Kali’na, Karipuna e Palikur. Desde 2021 o coletivo tem realizado diversos encontros com o intuito de organizar e fortalecer as discussões e o protagonismo dos artistas indígenas da região. 

Atualmente, a busca é por uma representatividade maior em seu território e nas esferas municipais, estaduais e federais, além da defesa e conservação do patrimônio material e imaterial dos povos indígenas do Oiapoque.  

“Dentro desse coletivo a gente trabalha a questão artística contemporânea. A gente pega os conceitos novos da arte moderna e leva para a cultura tradicional indígena. A gente aproveita bastante características no sentido das marcas, dos grafismos, das histórias, das estampas, nos tecidos, nas bolsas, nas cuias e até mesmo no próprio artesanato”. Noel Henrique, do povo Galibi Marworno.

Reunião de organização e planejamento, Terra Indígena Uaçá. Oiapoque (AP) (foto: Marcela Jean-Jaques/ 2021)

“Estamos trabalhando com os jovens, com as escolas, em projetos com as mulheres e em parceria com o Conselho de Caciques, que são as lideranças locais, para transformar o que nós temos em práticas diárias”, disse. Dieimisom Sfair, do povo Karipuna.

Performance Pesadelos, de Dieimison e Noel. Terra Indígena Uaçá. Oiapoque (AP) (foto: Nawã Karipuna/ 2021)

Sobre a exposição

A exposição do coletivo na Assembleia da Coiab contou com os trabalhos do artista indígena Milton Nunes, pertencente ao povo Galibi Marworno. Seu trabalho retrata os mitos e histórias dos povos da Terra Indígena Uaçá, representados em desenhos e trabalhos esculpidos em cuias. “A cuia faz parte da cultura indígena Galibi Marworno. Ela começou a perder espaço para as coisas que vem de fora da aldeia, como as louças, o prato, a colher e a tigela”, disse.

Os trabalhos de Milton revelam o interesse do artista, pautado pelas tradições de seu povo, cria imagens figurativas e abstrações geométricas de grafismos e marcas. Nos trabalhos apresentados na exposição estão presentes 6 desenhos figurativos em preto e branco, criados com tinta nanquim sobre papel, que dialogam com os mitos indígenas dos Galibi Marworno, além da exposição de 10 cuias. Objetos de múltiplos usos e variada decoração, as cuias estão presentes nas casas de muitas famílias na aldeia de Kumarumã.

Multidão de pessoas

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Entrevista com Milton durante o evento (Foto: Edian Karipuna/2022)

Utilizando de imagens abstratas e cores vivas, Yermollay Caripoune apresentou pinturas em tela de histórias do seu povo. “A gente tem um mundo espiritual na nossa cultura Karipuna, na visão dos 3 mundos:  o mundo dos espíritos e das almas, o mundo em que vivemos e o mundo de baixo, que é o mundo das águas, onde os animais se comunicam”, contou. 

Segundo as narrativas indígenas, toda a paisagem da região é habitada por diferentes seres (humanos, animais ou plantas) e, também, por seres “do outro mundo”, que se manifestam pela intermediação dos pajés. Neste sentido, o trabalho de Yermollay é inspirado na mitologia e cosmologia indígena do povo Karipuna, arraigada com seu universo existencial, transporta materiais e técnicas ancestrais para uma visão de mundo onde o real e o imaginário se fundem.

 “Tunãkay”, 2019
“Ouayou sol”, 2015

“Eu enxergava os grafismos que minha avó fazia nas cuias, em seguida, expressava todo aquele conhecimento no papel. Me dediquei à preparação do jenipapo do Aramari e comecei a fazer os grafismos das cuias em festas do Turé Karipuna e em reuniões. Na minha aldeia, comecei a marcar os grafismos no muro do centro comunitário e, depois, passei a marcar os muros de outras aldeias com os grafismos que minha avó Delfina marcava em suas cuias”, relata Yermollay Caripoune.

Homem de uniforme branco segurando taco de golfe e árvores ao fundo

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Yermollay Caripoune (Foto: Tiago Palikur/2022)

A exposição do coletivo Waça-wara também apresentou o trabalho de Keyla, pertencente ao povo Palikur-Arukwayene. Keyla utiliza o desenho digital em suas criações gráficas e nas composições de seus desenhos. “Minha inspiração é a história do meu povo, as marcas dos nossos clãs e também o grande artista que tive o prazer de conhecer, Jaider Esbell. Nas histórias das narrativas do meu povo, os homens são sempre os guerreiros, poucas vezes é mencionada uma mulher, então eu queria mudar essas personagens e trazer elas para o mundo atual, como eu me vejo hoje”, contou Keyla. 

Atualmente, ela é integrante do grupo PET-INDÍGENA do curso Licenciatura Intercultural Indígena (CLII) na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). 

Indígena universitária, 2022                    kawakuyene, 2022                              Indígena, 2022

“É emocionante ver um parente chegar e dizer, ‘nossa, é muito bom esse trabalho’. É importante para inspirar outras mulheres jovens da tua aldeia e também dos outros povos. Teve até um parente Kali`nã que falou: ‘você tem que vir até minha aldeia, no meu território, para mostrar para os jovens que você está fazendo esse trabalho’. É bom estar ocupando esse espaço, é uma experiência muito boa para mim e uma maneira de eu poder sair um pouco do lugar em que eu sempre me escondi, e começar a falar por meio da minha arte”, concluiu.

Mulher segurando um violão

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Equipe de comunicadores indígenas do Oiapoque entrevista Keyla Palikur (Foto: Marcelo Domingues/2022)

Também estiveram expostos os trabalhos do grupo “Manulí”, nome que se refere à matriarca do povo Galibi Kali’na. Toda a produção do grupo é confeccionada em tecido e as pinturas são feitas à mão ou em serigrafia. Sônia Jeanjacques, do povo Galibi Kali’na, conta que elas são mulheres indígenas artesãs e agricultoras da aldeia Galibi. O povo de Sônia vive na Terra Indígena Galibi no Amapá, fronteira franco-brasileira. 

“Sempre trabalhamos com a agricultura e os artesanatos de forma simultânea, pois é uma de nossas principais fontes de renda”, disse Sônia. Na exposição, o grupo Manuli, apresentou 4 desenhos e 8 painéis pintados na madeira, com imagens figurativas e grafismos do povo Kali’nã, além da exposição e comercialização de seus artesanatos.

Mostra dos trabalhos do povo Galibi Kali’na (Foto: Marcela Jean-Jacque/2022)

“O coletivo tem vários tipos de artistas, cada um dentro da sua esfera e com o seu conhecimento, cada um com sua técnica, porém, a ideia é uma só: o resgate de nossa cultura. Trabalhar a cultura é repassar para a nossa juventude, para as nossas crianças, para os nossos alunos, a importância da cultura em nossas vidas”, disse Milton Marworno.

Expografia

A proposta dos painéis foi ideia de Davi Marworno, que visitou a exposição de `Luiz Zerbini`, no Museu de Arte de São Paulo (MASP), em junho de 2022. A expografia é baseada em uma mostra realizada em 1970 por Lina Bo Bardi (1914-1992) para uma exposição no próprio MASP.

A estrutura para a exposição foi pensada a partir do amplo espaço da tenda da Assembleia da Coiab. As pinturas dos painéis foram feitas de forma coletiva, unindo os grafismos e marcas dos quatro povos do Oiapoque. Inicialmente as obras de cada povo, seriam expostas nos suportes pintados pelo mesmo povo, mas durante a montagem, a equipe responsável optou em misturar os painéis, como uma forma de mostrar a união dos quatro povos indígenas da região. 

Segundo Tairene, do povo Karipuna, a participação dos jovens da aldeia Manga durante a montagem da exposição foi fundamental para a composição da ornamentação e instalações dos espaços do evento. “Ver a juventude ativa e colaborando somou bastante. Há muito tempo não víamos nossos jovens agindo dessa forma. Isso trouxe mais união aos jovens e conhecimento. Fico feliz por essa assembleia da Coiab ter sido realizada em minha aldeia”.

Pessoas na frente de um carrossel

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Pintura do Povo Karipuna, aldeia Manga (Foto: Dieimison Sfair/2022)

Ao abordar a criação dos suportes para expor as obras, Milton Marworno  ressalta a sua importância dentro do conceito pensado pelo coletivo. “Entre o coletivo, foram muitas discussões sobre as ideias de montagem da exposição. As estruturas dos painéis para colocar as telas foi algo que trouxe uma visibilidade e um reconhecimento muito grande para mim e para os meus colegas”. 

Para Dieimisom, do povo Karipuna, os suportes dos painéis ficaram bem estruturados na entrada principal do evento “A gente tem que se manter perto do povo e das aldeias para fazer a nossa arte, para mostrar que a arte não é uma coisa de pessoas ricas. Na nossa região é muito recente ter esse tipo de exposição, então isso inspirou os jovens”, conta.  

Optou-se em montar os painéis em formato geométrico, alternando a direção dos ângulos ao fim de cada painel, o que possibilitou direcionar o público nas ligações entre as obras. O movimento livre entre os painéis fez o público deslocar-se em poucos segundos ao encontro com os quatro povos da região. 

Uma imagem contendo ao ar livre, cerca, trem, pista

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Montagem dos painéis (Foto: Joyce Aniká/2022)

Parte das propostas pensadas para a exposição faz parte do projeto expográfico do coletivo Waçá-wara para ser exposto na reabertura do Museu Kuahí dos Povos Indígenas do Oiapoque, prevista para este ano. A curadoria das obras foi realizada pelo coletivo, com apoio do Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena. Na exposição dos banners, o público teve o suporte de textos selecionados para conduzir a leitura da biografia com trechos de falas transcritas dos próprios artistas. 

Pessoas ao redor

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Exposição de Milton Galibi Nunes  (Foto: Marcela Jean-Jacque/2022)
Exposição de Keyla Palikur  (Foto: Joyce Aniká/2022)

Para Keyla Palikur, a exposição foi uma oportunidade para mostrar os trabalhos que estão ocorrendo hoje nas terras indígenas do Oiapoque. “É a primeira vez que eu fiz uma exposição. Eu estava vendo parentes falarem comigo e estava surpresa porque não estou acostumada a falar sobre a minha arte, como eu faço para ter as minhas ideias. O pessoal do Rio Urukawá adorou o meu trabalho e meu pai gostou muito. Recebi apoio do meu povo”, contou.

Para Dieimison, a exposição do coletivo foi um momento importante para mostrar o trabalho dos artistas da região. “Mostrar para os outros povos daqui da Amazônia um pouco sobre essa riqueza que nós temos no nosso município, nas nossas aldeias”, disse.  

Ao refletir sobre as próximas ações, Milton espera que o coletivo continue se fortalecendo. “Que esse coletivo nunca se disperse, que tenha mais integrantes com outras esferas de criação, como a musical por exemplo. Vamos buscar criar oficinas para tentar incentivar nossa juventude, porque nós temos muitos artistas escondidos em nossas comunidades”, declarou.

Ficha técnica da exposição:

Integrantes do Coletivo Waçá-wara:

  • Keyla Palikur – povo Palikur
  • Yermollay Caripoune – povo Karipuna
  • Miranda Santos Narciso – povo Palikur
  • Tairene Aniká dos Santos – povo Karipuna
  • Davi Marworno – povo Galibi Marworno
  • Dieimisom Sfair dos Santos – povo Karipuna
  • Milton Galibi Nunes – povo Galibi Marworno
  • Marcela Jean-Jacque – povo Galibi Kali`na
  • Noel Henrique – povo Galibi Marworno
  • Elinaldo Henrique – povo Galibi Marworno
  • Luene Karipuna- povo Karipuna
  • Sônia Jean-Jacque – Galibi Kali`na

Projeto expográfico:

  • Waçá-wara – Coletivo de Artistas Indígenas do Oiapoque 
  • Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena / Programa Oiapoque

Designer gráfico:

  • Gabriel Nogueira Rollo

Cenografia e Montagem:

  • Sônia Jean-Jacques
  • Marcelo Domingues
  • Keyla Palikur 
  • Yermollay Karipuna
  • Milton Galibi Nunes
  • Lucas Gomes

Fotos: 

  • Davi Marworno 
  • Sônia Jean-Jacques
  • Marcela Jean-Jacque
  • Lux Vidal  
  • Marcelo Domingues

Apoio:

  • CTL FUNAI – Oiapoque
  • CCPIO – Conselho dos Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque
  • COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
  • APOIANP – Articulação dos Povos Indígenas do Amapá e Norte do Pará 
  • Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena
  • AMIM – Associação das Mulheres Indígenas em Mutirão
  • Waçá-wara – Coletivo de Artistas Indígenas do Oiapoque
  • Museu Kuahí dos Povos Indígenas do Oiapoque

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