Texto: Thaís Herrero
“Eu comecei junto ao meu pai. Colhia com ele os ovos de tracajás perto da nossa casa, cuidava dos ovos e protegia. Eu vigiava até nascerem os filhotes. Depois, meu pai vinha buscar os filhotes, que era o trabalho dele. Eu era criança na época e aprendi isso com ele”. Essa memória de infância foi compartilhada por Clemiana Nunes dos Santos, indígena do povo Galibi Marworno, moradora da aldeia Kumarumã, durante as atividades de soltura dos tracajás em março deste ano.
A atividade acontece todos os anos nas aldeias do Oiapoque e é parte do Projeto Kamahad Tauahu – Nukagmada Mewka, que significa “amigos dos tracajás” na língua dos povos locais. Desde que começou, o projeto de manejo e cuidado dos ovos e filhotes tem garantido o aumento e a segurança da população de tracajás na natureza. A espécie é muito importante para as comunidades indígenas como parte de sua alimentação e tradições.
Março é sempre um mês esperado, pois é o momento de soltar os pequenos tracajás pelos rios e lagos para que mais tarde possam ser encontrados maiores e aí sim, serem caçados, garantindo a reprodução segura da espécie. Além disso, os dias de soltura incluem atividades com as crianças.
>> Leia mais sobre o projeto Amigos dos Tracajás
Herança para as futuras gerações
Clemiana se recorda de um tempo distante, quando ainda não havia a organização de um projeto sobre esse manejo dos ovos. Seu pai, no entanto, já cuidava dos quelônios para garantir que hoje ela pudesse ver esses animais na natureza e ensinar a geração de seus filhos e netos a cuidar também deles. “É um trabalho que ele tanto ama e sempre se esforçou desde quando ele era jovem até os dias de hoje. Então a gente tem que preservar para as nossas crianças que lá no futuro isso vai ficar para eles”, refletiu.
Neste ano, 2.281 tracajás filhotes foram soltos pelos rios e lagos do Oiapoque. É um número expressivo e muito mais alto do que já foi quando o projeto começou. Ainda assim, os Agentes Ambientais Indígenas (os chamados Agamins) prevêem melhorias nas técnicas de manejo para que ainda mais ovos vinguem e se tornem pequenos quelônios a serem soltos.
As mudanças climáticas também são uma ameaça para as futuras gerações de tracajás. Em 2021, os Agamins reportaram que devido ao aumento da intensidade das chuvas, a temperatura das Terras Indígenas ficaram abaixo da média e, consequentemente, o solo não atingiu o calor necessário para muitos ovos serem chocados. É esse tipo de preocupação que os Agamins têm e é sobre isso que muitos deles estudam.
Atividades educativas
O evento de soltura, como sempre, não aconteceu isoladamente. Foi acompanhado de muitas atividades educativas para as crianças, com brincadeiras, jogos e explicações sobre a importância do manejo. Os Agamins fizeram apresentações sobre acordos comunitários e segurança alimentar. Cerca de 600 indígenas de nove aldeias, entre jovens, adultos e crianças, participaram das atividades.
Como explica Egson Clarindo, um dos Agamins que participam do projeto, esse trabalho repercute em toda a comunidade, que fica mais engajada em cuidar, tanto dos tracajás, quanto dando apoio ao manejo. Egson é do povo Galibi Marworno e morador da aldeia Flamã, na Terra Indígena Uaçá.
“Queremos dar o exemplo para as crianças continuarem esse trabalho. Vamos ser os professores passando todo esse conhecimento para elas. Nós queremos ensinar e multiplicar nossos trabalhos, que é um trabalho importante para a gente incentivar as crianças a cuidar da natureza, preservar”, diz.
O pai de Clemiana é Manoel Severino dos Santos, também conhecido como o Agamin Veterano, por ser o mais velho do grupo. Durante as atividades, ele falou com as crianças sobre seu vasto conhecimento no manejo dos tracajás e a importância de ensiná-lo.
“Eu trabalho há muito tempo com os tracajás e vou mostrar para vocês como fazemos a coleta, como cuidamos e protegemos dos ovos até os filhotes nascerem. É importante que a gente faça esse trabalho para deixar para vocês, que são nossas crianças. Para que vocês possam conhecer assim como nossos antepassados nos ensinaram. A escola tem que incentivar as crianças a aprender sobre os tracajás. É importante e eles já estão um pouco raros na comunidade. As crianças também têm que saber que isso é importante para a nossa cultura”, disse Manoel Severino, o Agamin Veterano.
Severino também explicou sobre a história de Lapusiê, ou a constelação Sete Estrelas (Plêiades). “Os tracajás são devolvidos por nós para o Lapusiê. Depois, o Lapusiê devolve para a comunidade e numa quantidade bem maior”, conta. O povo Galibi Marworno confia neste astro como uma divindade que é a dona dos animais, quando Lapusiê passa pelo céu, ele vai trazendo consigo os peixes, as caças e fortalecendo a vida nas terras indígenas.
Mais sobre o projeto
A etapa de soltura de 2023 aconteceu entre 27 e 31 de março e se deu nas cinco regiões de Oiapoque. A equipe do Iepé e dos Agamin se dividiu em duas para acompanhar o trabalho. Uma nos rios Uaçá e Urukawá, e outra, nos rios Curipi e Oiapoque. No total, participaram aproximadamente 600 pessoas, de 09 aldeias. Além do apoio do Instituto Iepé, o projeto conta com a parceria da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da Articulação das Mulheres em Mutirão (AMIM) e financiamento da Fundação Rainforest da Noruega, The Nature Conservancy (TNC) e Agência de Desenvolvimento Francês (AFD).
Assista o vídeo sobre a soltura de tracajás de 2023