Texto: Thaís Herrero
Durante a reunião do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (Comitê da CEDAW), realizada em Genebra no final de maio, o governo brasileiro recebeu recomendações cruciais que refletiram as demandas do movimento indígena presente.
Ao longo dos dias, representantes da sociedade civil participaram das agendas junto à delegação brasileira e aos membros do CEDAW. O Comitê revisou os relatórios da sociedade civil, abordando a situação de grupos variados de mulheres, incluindo indígenas, negras e LGBTQIA+, além de ouvir as perspectivas do governo.
Algumas semanas após a reunião, a ONU apresentou um documento com recomendações destinadas ao Brasil para promover ações que eliminem a discriminação contra mulheres e meninas. Embora não tenham peso de lei, essas recomendações servem como guias para os governos, e devem ser implementadas, pois serão cobradas no futuro.
Esta foi a primeira vez que a Associação das Mulheres Indígenas em Mutirão (AMIM) e o Iepé participaram da reunião do CEDAW. Renata Lod e Rita Becker representaram essas organizações, reforçando as demandas do relatório A situação das mulheres indígenas do Oiapoque, Amapá e Amazônia. O documento apresenta quinze recomendações específicas ao governo brasileiro, aproveitando o enfoque regional do Oiapoque para refletir sobre desafios similares enfrentados por mulheres em outras partes da Amazônia. Para saber mais, leia a matéria A situação das mulheres e meninas indígenas do Oiapoque chega à ONU.
Momento Histórico
Para Renata Lod, a entrega do relatório e a participação na reunião foram marcos positivos. O documento final do CEDAW absorveu grande parte das pautas apresentadas pelo movimento indígena, destacando a importância da articulação dos povos indígenas e marcando um passo significativo na luta pelos direitos das mulheres. Renata enfatizou que participar de um órgão da ONU é uma maneira eficaz de garantir que o governo brasileiro compreenda que não está isolado no mundo e de mostrar que a comunidade internacional está atenta.
O Comitê da CEDAW desempenha um papel crucial, oferecendo um espaço para a sociedade civil se manifestar através de relatórios e participação direta em reuniões. Renata observou que o CEDAW demonstrou um compromisso real em ouvir e incluir as demandas das mulheres indígenas nos documentos. Ela reconhece que ainda há muito trabalho pela frente para garantir que o governo brasileiro implemente efetivamente as recomendações.
Alguns dos temas Recomendados influenciados pelas demandas indígenas
1. Acesso à Justiça
O Comitê destacou as dificuldades enfrentadas pelas mulheres indígenas no acesso à justiça, incluindo barreiras linguísticas, falta de acessibilidade, custos elevados para locomoção e limitação de informações. Recomendou que o governo garanta a plena acessibilidade dos tribunais, implemente tribunais móveis em áreas remotas, ofereça assistência jurídica gratuita, interpretação em línguas indígenas e reembolso de despesas de transporte, além de divulgar informações sobre recursos legais.
O CEDAW também recomendou a criação da Casa da Mulher Indígena, com serviços especializados e protocolos contra a violência de gênero, e a capacitação de profissionais da Rede de Proteção à Mulher sobre aspectos culturais e direitos dos povos indígenas.
2. Saúde
Diante do aumento significativo da taxa de mortalidade materna, que afeta desproporcionalmente mulheres negras e indígenas em áreas rurais das regiões Norte e Nordeste, o Comitê enfatizou a falta de reconhecimento e integração dos saberes ancestrais, cosmologia e práticas indígenas no sistema federal de saúde. Recomendou que o governo reconheça e incorpore os sistemas de saúde tradicionais e naturopáticos indígenas, incluindo o reconhecimento dos conhecedores tradicionais, como parteiras, benzedeiras e pajés.
3. Consulta Prévia
O Comitê recomendou que o governo brasileiro garanta a consulta prévia, livre e informada para comunidades indígenas sempre que projetos possam impactá-las. Destacou a necessidade de assegurar a participação de mulheres rurais, indígenas, quilombolas e afrodescendentes nas decisões sobre atividades extrativistas, econômicas, de desenvolvimento, turismo, clima e conservação, garantindo seu consentimento e compensação adequada. O documento sublinhou a discriminação enfrentada por mulheres indígenas, quilombolas e afrodescendentes, que frequentemente não possuem títulos de propriedade e sofrem com remoções forçadas e exploração de terras sem consulta ou consentimento.
4. Proteção Territorial
Houve críticas à aprovação do “Marco Temporal”, que ameaça processos de demarcação de terras indígenas. Recomendou-se que o governo rejeite essa tese e promova a proteção e demarcação dos territórios indígenas. Além disso, foram sugeridas ações de proteção territorial, fiscalização e combate ao crime organizado e ao tráfico de drogas dentro desses territórios, com especial atenção às áreas de fronteira como o Oiapoque. Também recomendou-se promover ações para fortalecer os órgãos de fiscalização e a política indigenista, visando proteger as comunidades indígenas, incluindo mulheres e meninas.
Compromissos firmados pelo Governo
Paralelamente à reunião oficial do CEDAW, houve reuniões da delegação brasileira com os representantes do governo: a Ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, e representantes dos Ministérios da Igualdade Racial, dos Povos Indígenas, dos Direitos Humanos e da Justiça. Eles se comprometeram a revisar os relatórios entregues pela sociedade civil e, após a publicação das recomendações da ONU, realizar uma reunião com todas as organizações para discutir a implementação das recomendações. Segundo a Ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, essa é uma forma de aproximar o governo da sociedade civil.
Já Renata Lod refletiu sobre o longo prazo desse tipo de articulação. “A sociedade civil está aqui para construir junto, não apenas um governo, mas um país melhor – governos passam, mas a sociedade civil permanece”, disse Renata.
A produção do relatório A situação das mulheres indígenas do Oiapoque – Amapá – Amazônia, e a presença na reunião do CEDAW tiveram apoio da Rede de Cooperação Amazônica (RCA) e Instituto sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos.