Violação dos direitos dos povos indígenas no Brasil preocupa ONU

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Em novembro, o Brasil passou por avaliações na ONU sobre sua atuação na proteção e na promoção dos direitos humanos. Neste texto, explicamos esses importantes mecanismos e tratamos das perspectivas de futuro

Texto: Thaís Herrero

A delegação da RCA, composta por Luis Donisete Grupioni, coordenador-executivo do Iepé e secretário executivo da RCA, Maial Kayapó, do Instituto Paiakan, e Maurício Yekuana, da Hutukara Associação Yanomami. (Foto: Acervo Iepé/RCA)

“A comunidade internacional tem demonstrado preocupação com a deterioração da situação dos direitos humanos no Brasil, especialmente em relação aos povos indígenas e afrodescendentes. Mazelas históricas, racismo estrutural e a violência contra minorias se acentuaram ao longo de todo o período do governo Bolsonaro. E isso não passou despercebido aos órgãos da ONU nem aos governos de diferentes países”, é como reflete, o antropólogo Luis Donisete Benzi Grupioni, sobre as duas avaliações pela qual o Brasil passou recentemente em relação à atuação do seu governo na promoção e defesa dos direitos humanos. 

Na semana de 14 a 19 de novembro, na sede da ONU, na Suíça, aconteceram os dois eventos: a avaliação do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU, no âmbito do 4o Ciclo da Revisão Periódica Universal (RPU) e a avaliação do Brasil no Comitê Para Eliminação da Discriminação Racial (CERD).

Em ambos os eventos, a Rede de Cooperação Amazônica (RCA) e o Instituto Iepé estiveram presentes para participar e acompanhar as negociações. A delegação foi composta por Maurício Yekuana, da Hutukara Associação Yanomami, Maial Kayapó, do Instituto Paiakan, e Luis Donisete Grupioni, coordenador-executivo do Iepé e secretário executivo da RCA. Apoiaram a participação da delegação o Instituto sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos, a Fundação Rainforest da Noruega e a Fundação Ford. 

A primeira avaliação que aconteceu no período foi a da RPU. A delegação do Brasil foi chefiada pela atual Ministra de Direitos Humanos, Cristiane Britto, e composta por vários funcionários de órgãos do governo federal. Eles apresentaram o que consideram avanços na proteção e promoção dos direitos humanos e escutaram as recomendações que os países fizeram ao Brasil. Mais de 100 países fizeram recomendações e a temática dos direitos dos povos indígenas foi uma das mais citadas.

Também aconteceram alguns eventos paralelos, como o promovido pelo Coletivo RPU, em 16 de novembro, chamado: “Direitos Humanos no Brasil: balanço do último ciclo da Revisão Periódica Universal (RPU) e a perspectiva para o futuro”. Além dos ativistas brasileiros, estiveram presentes Nyaletsossi Clément Voule, Relator Especial da ONU sobre direitos à liberdade de reunião pacífica, e o jornalista Jamil Chade. 

O segundo procedimento de avaliação que o país enfrentou em Genebra foi a revisão do Comitê CERD, que monitora se o Brasil está cumprindo as diretrizes da Convenção Internacional para Eliminação da Discriminação Racial. O tratado é de 1965 e foi o primeiro instrumento internacional de direitos humanos que o Brasil ratificou, no ano de 1969.

No processo de revisão, o Comitê analisa o relatório oficial de cada governo e os relatórios da sociedade civil. Há uma sessão específica de diálogo dos membros do Comitê com as ONGs, no qual Maial Kayapó e Luis Grupioni  fizeram breves pronunciamentos. Além disso, como o relatório apresentado pelo nosso governo não trazia nenhuma informação sobre os povos indígenas, o Iepé e a RCA prepararam um documento, referente ao período do governo Bolsonaro, para que o Comitê cobrasse do governo brasileiro mais ações sobre o tema.

Durante esse trabalho de incidência na CERD estivemos articulados com representantes de Raça e Igualdade, Crioula, Geledés, Anistia Internacional e outras organizações.

A seguir, Luis Donisete Benzi Grupioni faz um balanço sobre as avaliações, e apresenta perspectivas para o próximo ano na agenda de direitos dos povos indígenas.

Luis Donisete Benzi Grupioni na sala de reuniões da ONU. (Foto: Acervo Iepé/RCA)

Iepé: Como funciona a Revisão Periódica Universal (RPU)?

Luis Donisete Benzi Grupioni: A Revisão Periódica Universal é um mecanismo relativamente novo, criado em 2006 pela Assembleia Geral das Nações Unidas. É uma avaliação entre pares, isto é, são os países avaliando a situação dos direitos humanos dos países membros das Nações Unidas e fazendo recomendações uns aos outros. A cada ciclo de revisão, os países devem prestar contas das recomendações recebidas no ciclo anterior, mostrando avanços na proteção dos direitos humanos. É uma avaliação feita a partir de três documentos principais. Um relatório oficial do país é preparado e submetido ao Conselho de Direitos Humanos, relatando a situação dos direitos humanos nos últimos quatro anos. O segundo e o terceiro relatório são preparados pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU: um, com o compilado de informações fornecidas por mecanismos, procedimentos especiais e órgãos de tratado; e outro, com um resumo de informes submetidos por organizações da sociedade civil.

No momento da avaliação, o país em questão envia uma delegação à Genebra, que apresenta aos membros do Conselho de Direitos Humanos a situação em seu país. Nesse momento, recebe questionamentos e perguntas dos demais países, bem como recomendações para avançar na agenda de promoção dos direitos humanos. Um relatório final é preparado com esse conjunto de recomendações recebidas. O país, então, avalia essas recomendações e depois de cerca de um mês informa quais recomendações ele acolhe e quais ele toma nota. “Tomar nota” no jargão diplomático significa que não se compromete com elas. Quatro anos depois, ele retorna ao Conselho de Direitos Humanos para prestar contas da implementação das recomendações recebidas e inicia um novo ciclo de avaliação, recebendo novas recomendações. Neste momento, estamos no 4o. Ciclo deste processo. 

Como você analisa a avaliação do Brasil neste 4o Ciclo da Revisão Periódica Universal (RPU)?

Já esperávamos que o governo brasileiro, na gestão de Bolsonaro, não fosse reconhecer suas mazelas na promoção dos direitos humanos, nem as dificuldades em promover direitos de grupos minoritários e de parcelas significativas do povo brasileiro. Isso na verdade tem sido uma postura comum entre os últimos governos do Brasil. O que talvez diferencie o governo Bolsonaro dos demais é que, neste ciclo, ficou claro que o governo não só deixou de cumprir com as recomendações recebidas há 4 anos, como claramente retrocedeu em padrões mínimos, com retrocessos em relação a várias áreas e segmentos sociais. 

Não só a violência aumentou, como a pobreza se intensificou e o racismo se cristalizou. Mas nada disso passou despercebido na comunidade internacional, e o Brasil recebeu críticas e questionamentos e muitas recomendações no sentido de retomar programas e políticas que promovam igualdade, equidade e proteção e garantam os direitos das pessoas.

Felizmente temos pela frente um novo governo, e esperamos que assuma firmemente o compromisso de cuidar das pessoas, promovendo condições de vida dignas para parcelas significativas do nosso povo, que não tem comida, moradia, educação, saúde e paz no dia a dia. Espero que as recomendações que o Brasil recebeu na RPU sejam implementadas pelo novo governo.

Quais foram as principais recomendações recebidas pelo Brasil? Alguma de destaque?

O Brasil recebeu, em novembro na ONU, 306 recomendações. Foram 60 a mais que no último ciclo de revisão, em 2017. Esses números, por si só, já demonstram uma deterioração na situação dos direitos humanos da população brasileira. Os países que avaliaram o Brasil demonstraram preocupações consistentes com a situação da violência policial, com a pobreza, a fome, a situação das mulheres, dos afrodescentes, dos encarcerados, com discursos de ódio, dificuldades de acesso à justiça, demarcação de terras indígenas, racismo, e com a Covid-19. 

O país foi instado a cumpir com obrigações de tratados e convenções internacionais das quais somos signatários, com a retomada de programas e políticas públicas para redução da pobreza, diminuição da violência policial, melhoria das condições de saúde, educação e saneamento básico, de demarcação de territórios indígenas, de proteção a defensores de direitos humanos, bem como a desenvolver programas e proteger as crianças, as mulheres, os afrodescendentes, as pessoas LGBTQI+ e combater o racismo e assegurar a liberdade de imprensa. 

Eu entendo que o Brasil recebeu um chamado contundente no sentido mais amplo de cuidar do seu povo, com respeito e dignidade. 

E em relação à avaliação do Comitê CERD, o que o governo apresentou e como foi recebido pelo comitê e pela sociedade civil presente?

O Comitê CERD, composto por 18 peritos independentes, avalia e monitora o cumprimento das obrigações constantes na Convenção Internacional para Eliminação da Discriminação Racial da ONU adotada em 1965. 

Fazia muitos anos que o Brasil não apresentava relatório prestando contas de suas ações para eliminar a discriminação racial. Mas, em 2020, o Brasil apresentou um relatório cobrindo o período de 2004 a 2017, (3 relatórios) e assim entrou na fila da avaliação do Comitê para Eliminação da Discriminação Racial.

Nessa avaliação, o Comitê de Peritos avalia o relatório oficial apresentado pelo governo e também relatórios submetidos por organizações da sociedade civil e realiza sessões de diálogo tanto com o governo quanto com a sociedade civil, apresentando questionamentos e solicitando dados e informações. Ao término do processo, o Comitê CERD emite um relatório sobre o país, expondo suas preocupações e fazendo recomendações. 

O Brasil, num prazo de um ano, deverá fornecer informações sobre um conjunto de recomendações consideradas prioritárias pelo Comitê e no prazo de quatro anos passará por nova avaliação.

O que o relatório trazia em relação aos povos indígenas?

O relatório do governo não trazia nenhuma informação sobre os povos indígenas. Assim, a RCA decidiu ser oportuno preparar e apresentar um relatório para o Comitê, cobrindo o período 2019 a 2022, com o intuito que o Comitê cobrasse o governo brasileiro sobre ações para os povos indígenas. 

No diálogo do Comitê com representantes da sociedade civil solicitamos que a discriminação e violência contra os povos indígenas e a violação dos direitos indígenas pelo governo Bolsonaro fosse objeto de atenção.No diálogo do Comitê com a delegação do Brasil, são feitas perguntas e pedidos de esclarecimento. 

Eu diria que foi constrangedor escutar de uma das representantes da delegação oficial que o governo Bolsonaro promoveu os direitos constitucionais indígenas e que foram criados 16 Grupos Técnicos para avaliar pedidos de reconhecimento de Terras Indígenas nos últimos anos. Sabemos que esses GTs só foram criados a partir de medidas judiciais. Nenhuma terra indígena foi reconhecida pelo atual governo que, inclusive, buscou enfraquecer direitos assegurados na Constituição e abrir os territórios indígenas para a exploração minerária e agropecuária. 

A delegação do Brasil recebeu duras críticas por parte dos membros do Comitê CERD que inclusive questionaram a própria composição da delegação, que não refletia a diversidade do povo brasileiro. A relatora responsável pelo Brasil, Dra. Gay McDougall, disse em sua fala final que se o Brasil continuar a fazer coisas de forma gradual, nunca vai vencer o quadro de racismo estrutural existente. Afirmou que aquele era um governo de minoria que não representava nem negociava com a sociedade e que o tempo desse tipo de governo tinha acabado. 

Quais os encaminhamentos dessas duas reuniões para o nosso país e seus governantes?

Ao integrar o sistema internacional de proteção e promoção dos direitos humanos, o Brasil assume compromissos e obrigações e deve prestar contas de suas políticas e programas. Essas duas avaliações resultam num conjunto de recomendações em relação às quais o Brasil será cobrado daqui uns anos. No caso da avaliação do Comitê CERD, como o Brasil ratificou a Convenção, ele contrai a obrigação de desenvolver políticas que eliminem a discriminação racial no país e deve mostrar progressos nesse sentido. 

No caso da RPU, ao acolher as recomendações feitas pelos demais países, ele se compromete, igualmente, a mostrar avanços na agenda de direitos humanos. É importante lembrar que nessa esfera internacional os compromissos são do Estado brasileiro e não dos governos da vez. 

O que esperar da atuação do Brasil para os próximos 4 anos em relação a essas avaliações?

O Brasil não possui um procedimento claro do que tenho chamado de endereçamento das recomendações internacionais. Ou seja, após processos como estes da RPU e da CERD, o Brasil contrai obrigações, mas que não costumam pautar políticas e programas governamentais. É uma grande falha. Não basta que alguém no Ministério dos Direitos Humanos daqui quatro anos se preocupe em reunir dados para compor um relatório e apresentar na ONU. É preciso que essas recomendações sejam direcionadas para quem tem condições de implementá-las dentro do governo. 

Dou um exemplo: recomendações para a retomada dos procedimentos de demarcação de terras indígenas precisam ser remetidas para a Funai e para o Ministério da Justiça, que são os órgãos dentro do governo que têm capacidade e obrigação de cumprir. Assim como recomendações de melhoria na área da saúde devem ir para o Ministério da Saúde, da educação para o Ministério da Educação e por aí vai. 

É preciso estabelecer metas para essas recomendações, dizer quem vai ser responsável por implementá-las, em que tempo e criar indicadores para monitorar se os programas e ações desenvolvidos pelo governo estão sendo suficientes para cumprir com a recomendação. O Brasil não tem um sistema de monitoramento para recomendações internacionais e isso é algo que precisa ser encarado seriamente. 

Eu espero que o novo governo tome em consideração os compromissos que, diga-se de passagem, voluntariamente, assume no exterior e avance na proteção dos direitos humanos de todos.

Como podemos, enquanto sociedade civil, acompanhar e cobrar que as recomendações sejam colocadas em prática?

Bom, como organizações da sociedade civil penso que podemos, em primeiro lugar, divulgar essas recomendações para que mais pessoas dentro da sociedade conheçam as obrigações que o país contraiu no exterior, assim como divulgar esses procedimentos de avaliação. É importante que mais pessoas e grupos organizados dentro da sociedade compreendam esses mecanismos e possam cobrar do governo a implementação das recomendações. Essa seria uma segunda tarefa. 

Por fim, podemos monitorar o cumprimento das recomendações e podemos confrontar o governo com nossas informações quando o país entrar em novos ciclos de avaliações. Sempre é bom lembrar que o que se está buscando aqui é um aprimoramento de nossas instituições para a construção de um país mais justo, menos racista, menos violento e que promova os direitos fundamentais de seus cidadãos.

Acesse abaixo o relatório preliminar do Grupo de Trabalho da RPU sobre o Brasil e o relatório final do Comitê CERD sobre o Brasil.

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