Texto: Thaís Herrero
Nunca os rios e lagos do Oiapoque (AP) viram tantos filhotes de tracajá chegando em suas águas como neste ano. Foram 3.228 quelônios soltos pelo Projeto Kamahad Tauahu Nukagmada Mewka – Amigos dos Tracajás. O número é recorde e foi comemorado pelos indígenas da região como fruto de uma série de melhorias do projeto, equipes maiores de agentes ambientais e maior comprometimento das comunidades.
As atividades de soltura dos tracajás, que nasceram e foram monitorados por mais de três meses até poderem ir para as águas, aconteceram entre 18 e 27 de março nas regiões do Rio Uaçá, Rio Curipi, Rio Urukawá e Rio Oiapoque. O projeto Amigos dos Tracajás é realizado pelos Agentes Ambientais Indígenas do Oiapoque (os chamados Agamin) e apoiado pelo Iepé, pela Associação das Mulheres Indígenas em Mutirão (AMIM), pela Funai e pelo ICMBio.
Desde que começou, o projeto tem garantido o aumento da população de tracajás na natureza, a segurança alimentar dos povos indígenas e fortalecido o trabalho dos agentes ambientais nas suas comunidades. Por isso, os Agamin estão estudando e desenvolvendo novas técnicas para melhorar os resultados do projeto. Além do clima favorável nos últimos meses, as melhorias dos Agamin foram cruciais para o recorde alcançado deste ano.
Entenda quais foram essas melhorias.
Ovos ficam onde as mães escolheram
Há algum tempo, o Agamin Garcia Narciso fazia testes de manejo e monitoramento dos ovos de tracajás mantendo-os nos locais escolhidos pelas fêmeas. Ele percebeu que a taxa de eclosão e nascimento era maior do que entre os ovos recolhidos e colocados em incubadoras.
Neste ano, a equipe dos Agamin adotou a técnica de Garcia e fez um teste na Aldeia Flamã, Terra Indígena Uaçá. O resultado foi surpreendente: 90% dos ovos eclodiram com tracajazinhos.
Roselis Mazurek, consultora do Iepé, explica que ao retirar os ovos de locais de desova naturais para serem cuidados em incubadoras nas aldeias, sempre se adicionam riscos à sobrevivência dos tracajás em função de manipulação, transporte e replantio. “O manejo na natureza tem a vantagem de evitar a manipulação demasiada dos ovos em fases frágeis do período embrionário, minimizando a mortalidade, e também respeita o local escolhido pelas fêmeas de tracajá”, diz.
Considerando ovos de vento
Outro fator importante colaborou com a alta porcentagem de eclosão: o registro detalhado sobre as características das desovas e uma contagem mais efetiva dos ovos. Desta vez, os Agamin tiraram das contas os chamados “ovos de vento” – ovos não férteis que fazem parte das desovas, mas que jamais se tornarão filhotes.
“Antes, eles não eram diferenciados e acabavam sendo contabilizados como potencialmente viáveis, superestimando a mortalidade dos tracajazinhos. Isso foi corrigido neste ano e vimos que os “ovos de vento” representavam 10% dos ovos contabilizados, o que é bastante”, detalha Roselis.
Clima favorável
Nem todas as condições ideais para as desovas são controláveis, mas neste último ano, o clima colaborou. Roselis explica que 2023 foi um ano menos chuvoso e a isso se somou uma melhoria na estrutura das incubadoras.
“Incubadoras pouco rasas e com plantio de ninhos próximos podem ser inundadas em anos de muita chuva, o que baixa a temperatura e encharca demais o solo. Trocas gasosas entre os embriões e o ambiente causam muita mortalidade. Essas condições em situações onde há muitos ninhos nesse espaço relativamente confinado acaba afetando mais ovos como consequência”. Ela relembra que isso foi um fator de mortalidade em outros anos, particularmente nas aldeias no rio Urucauá.
Apoio das mulheres
Uma das novidades deste ano foi a participação de mulheres indígenas. A AMIM apoiou as atividades e mais mulheres estão participando da coleta dos ovos e da soltura dos tracajás. Uma dessas participantes foi Irene Felício, do povo Palikur, que vive na aldeia Kumenê, TI Uaçá. Ela ressalta a importância da parceria entre AMIM e os agentes ambientais para apoiar a participação das mulheres e, também, fortalecer ainda mais o projeto.
“Esse projeto para cuidar dos animais que fazem parte da alimentação tradicional de nós indígenas é um trabalho para nossa própria sobrevivência e para o crescimento das nossas crianças. Por isso a AMIM está junto, pois um trabalho sem ajuda, sem mutirão, dificilmente tem continuidade. Mas com ajuda, o projeto cresce. E queremos que as crianças testemunhem um trabalho bem sucedido. Então AMIM está junto para somar a força”, diz.
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Comunidades engajadas
Se o apoio das mulheres é importante, o da comunidade como um todo é fundamental para que as atividades de manejo deem certo e valham a pena. Por isso, os Agamin estão fortalecendo cada vez mais as articulações para pedir apoio aos caciques. E o caso do manejo dos ninhos nos locais naturais é particularmente um desafio.
Como o ovo do tracajá é um alimento tradicional e apreciado, neste primeiro ano de teste, os Agamim formaram equipes locais de revezamento para as áreas naturais de desova que seriam monitoradas. “Isso exigiu bastante organização, articulação e comprometimento. Mas funcionou bem”, conta Roselis.
Resultados para o futuro
Um resultado indireto do projeto, foram os acordos de conservação do tracajá, no qual caciques e lideranças de diferentes aldeias limitaram o consumo de ovos e de tracajás pelos próximos dois anos.
Para Geô Ioiô, agente ambiental da aldeia Kumenê, TI Uaçá, está claro o ganho no longo prazo. “Entendi que futuramente as crianças iriam sofrer, pois não teriam mais tracajás, que estão desaparecendo. Por isso temos que cuidar. Não vamos proibir de comer, porque faz parte da nossa alimentação, é com isso que crescemos e sobrevivemos, com isso que nossos pais nos alimentavam. Mas vamos aprender a preservar e moderar a captura. Vamos respeitar as regras dos nossos campos alagados, aprender a cuidar, a preservar e respeitar. Vamos tirar o suficiente para nos alimentar, para que não acabem e desapareçam futuramente, diz”.
O Projeto Kamahad Tauahu Nukagmada Mewka – Amigos dos Tracajás é realizado pelo Iepé em parceria com a Associação das Mulheres em Mutirão (AMIM), Funai e ICMbio. E tem apoio da Rewild, Rainforest da Noruega e da Agência Francesa de Desenvolvimento.
Essa atividade foi desenvolvida no âmbito do Projeto TerrIndigena, financiado pela Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) e pelo Fundo Francês Para o Meio Ambiente Mundial (FFEM).