Zo’é em São Paulo: uma viagem histórica

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Trilha de 10 horas pela Mata Atlântica, ver o mar pela primeira vez, intercâmbio com os Guarani, conhecer as lojas que vendem seus artesanatos: a visita dos Zo’é que vieram conhecer São Paulo foi repleta de primeiros encontros

Texto: João Bourroul

Após alguns minutos de precaução, a insuperável sensação de entrar no mar pela primeira vez. Na foto, Supi, Awapo’í e Tokẽ em Itanhaém (Foto: João Bourroul/Iepé)

Tokẽ, Se’y, Supi e Awapo’í saíram do norte do Pará e atravessaram mais de 3.500 km para chegar até São Paulo. Na mala e na mente, algumas missões e muitas expectativas: compartilhar experiências sobre artesanato e gestão territorial, exibir o documentário que registra os seus cantos, visitar os Guarani Mbya que vivem na Zona Sul de São Paulo. E conhecer o mar. 

Como será que eles imaginam o mar? A resposta de Awapo’í revela um pouco do modo de pensar Zo’ é: “Sim, eu já soube: me disseram que eu vou conhecer o mar. Agora eu só posso dizer no meu pensamento ‘como deve ser?’. Por mais que eu pense, não vi. É depois de ver que nós conhecemos as coisas”. 

Supi e Awapo’í, jovens que trabalham respectivamente como secretário e vice-coordenador da Tekohara, organização Zo’é, nunca tinham saído da Terra Indígena – eles tiveram que tirar seu RG para poder embarcar para São Paulo. A outra metade da comitiva, Tokẽ e Se’y, são um casal – ele é um dos principais chefes zo’é e ela é uma grande artesã.

A importância do Fundo de Artesanato Zo’é 

Os Zo’é e alguns dos artefatos do FAZ vendidos na Cestarias Régio (Foto: João Bourroul/Iepé)

A principal missão da comitiva foi conhecer algumas das lojas que vendem os artefatos do Fundo de Artesanato Zo’é (FAZ). Além do Instituto Baru e da loja Floresta no Centro, do Instituto Socioambiental (ISA), visitaram também a Cestarias Régio, que desde 2022 vende diversos artesanatos Zo’é: cestaria (estojos de arumã, cestos, abanos e tipitis) e panelas, além de acessórios, como pente, colher, brinco e tipoia. Na Régio também é possível encontrar os três livros já publicados da Série Saberes Zo’é: o livro da canoa, o livro das roças e o livro das flechas.  

Carolina Monteiro, proprietária da Régio, conta que é preciso criar um ambiente saudável de negociação nessa parceria comercial: “Acredito que é uma ótima estratégia de gerar renda e valor para o que é produzido por cada povo, em cada aldeia”. Carol diz que, mesmo com a ausência de grafismos e cores vibrantes, a cestaria Zo’é é um dos itens mais populares de sua loja. “As pessoas admiram muito o trançado, que é primoroso”, afirma. 

Quando alguém compra um produto Zo’é, o valor vai para o Fundo de Artesanato – é com esse recurso que os Zo’é adquirem itens para as famílias, decidindo em conjunto qual o item de maior necessidade coletiva naquele momento.  

“A visita dos Zo’é a São Paulo faz parte do processo de formação dos indígenas com relação ao Fundo de Artesanato Zo’é, de modo que eles possam cada vez mais se apropriar e ter mais autonomia na gestão do FAZ”, conta Roberta Teixeira, indigenista especializada da Funai, que acompanhou os Zo’é em seus primeiros dias em São Paulo.

Ei São Paulo, terra de arranha-céu

“São Paulo é muito bonita. Estou aqui pela primeira vez, vi as moradias dos kirahi [não indígenas], umas mais baixas, outras mais altas, outras mais altas ainda e outras que se parecem mesmo com casas. São assim as casas dos kirahi”, relata Supi. 

Foram 10 dias na cidade das casas altas e mais altas ainda. A comitiva passou uma tarde na sede do Iepé e conheceu parte da equipe administrativa do instituto, entrando em contato com mais detalhes dos processos que permitem aos Zo’é adquirirem os bens que usam no seu cotidiano e na vigilância de seu território.

Eles também participaram de uma sessão de exibição seguida de debate do filme “Jijet: Como Estudamos Nossos Cantos”, documentário dirigido por Hugo Prudente e Lia Malcher, assessor indigenista e consultora do Iepé, respectivamente, sob a supervisão de Dominique Gallois, coordenadora do Programa Zo’é. A sessão foi realizada no  auditório do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA), na Universidade de São Paulo (USP). Outros vídeos de divulgação relativos aos conhecimentos próprios da produção de artesanato foram exibidos no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.

A comitiva Zo’é durante a visita ao Instituto Baru, em São Paulo (Foto: João Bourroul/Iepé)

“Receber não só os corpos dos Zo’é, mas os espíritos também”

Uma parte importante da viagem a São Paulo foi a visita aos Guarani Mbya, da Terra Indígena Tenondé Porã, que fica em Parelheiros, a quase 70 km do centro da cidade, no extremo sul da capital paulista.

A visita ocorreu na aldeia Kalipety, “eucaliptal” em guarani, que conta com aproximadamente 100 pessoas, e leva esse nome pois, quando os Guarani Mbya retomaram a região onde ela foi aberta, se depararam com uma quantidade enorme de eucaliptos plantados para produção industrial.

“A gente ficou muito ansioso quando ficou sabendo que iria receber a visita desses parentes”, conta Jerá Guarani, uma das principais lideranças do território. “É uma grande honra, uma alegria imensa receber um povo que vem de outra realidade. Nos preparamos para receber não só os corpos dos Zo’é, mas os espíritos também”.  

Os Zo’é visitaram a roça da aldeia e foram recebidos na casa de reza da aldeia com uma  apresentação musical dos Guarani. Awapo’í registrou o áudio com seu gravador e, naquela noite, ficou ouvindo os cantos Guarani em seu fone antes de dormir. 

Os quatro Zo’é tiveram um acesso de riso quando o carro que estavam percorreu um trecho de estrada de terra dentro da TI Tenondé Porã e seus corpos chacoalharam – foi a primeira vez deles em uma estrada de terra esburacada, pois só é possível sair da TI Zo’é de avião e quando chegam no destino, em geral já estão na rua asfaltada das cidades. 

Os Guarani e os Zo’é também conversaram sobre artesanato e proteção territorial e, já de noite, todos assistiram o documentário sobre os cantos Zo’é enquanto Tokẽ e Se’y serviram para os anfitriões taku’a, um mingau zo’é feito com leite de castanha-do-Pará, tapioca, pimenta e sal vegetal.  

Apesar da distância geográfica, os Zo’é e os Guarani Mbya falam uma língua relativamente parecida, – ambas da família linguística Tupi-Guarani. “Logo no primeiro contato foi incrível ouvir eles falando palavras idênticas ou muito parecidas, como as classificações e os chamados de pais, mães e filhos”, conta Jerá.

Realidades distintas: a beleza do intercâmbio 

Os Zo’é, os Guarani e os parceiros do Programa Zo’é do Iepé e do Comitê Interaldeias que participaram do intercâmbio. Ao fundo, a serra que atravessaram no dia anterior (Foto: João Bourroul/Iepé)

Embora algumas palavras sejam semelhantes, são as diferenças entre eles que enriqueceram o intercâmbio.

Enquanto os Guarani têm uma relação de mais de 500 anos com os não indígenas, o contato “oficial” dos Zo’é com não indígenas se deu na década de 1980. Eles vivem no norte do Pará, entre os Rios Erepecuru e Cuminapanema. Atualmente são cerca de 330 pessoas, organizadas em 19 grupos. Os Zo’é são considerados um povo indígena de “recente contato” pelo Estado brasileiro.

Se a Terra Indígena Tenondé Porã tem uma população de cerca de 1.500 pessoas espalhadas em 16 mil hectares, os 330 Zo’é estão distribuídos em uma área de 680 mil hectares. Além da Tenondé Porã, os Zo’é também visitaram a TI Rio Branco e a aldeia Tekoa Mirim, localizadas respectivamente em Itanhaém e Mongaguá.  

Na roça da Kalipety, o milho é o carro-chefe. Eles também plantam bastante mandioca, batata, feijão, banana e abacaxi. Os principais cultivos dos Zo’é são mandioca, banana, cará, batata doce, pimenta, cabaça. Os Zo’é ficaram estupefatos com um enorme bananal assim como com um grande flechal plantados por não indígenas para fins comerciais em uma fazenda colada a essa Terra Guarani ainda não demarcada pelo Estado brasileiro.   

“Os Guarani nos perguntaram ‘Como é seu território? Como vocês fizeram o PGTA de vocês?’ E nós falamos um pouco sobre como o fizemos. Então os Guarani escutaram e disseram ‘Agora também faremos o nosso’”, lembra Supi. 

“Uma coisa que é muito igual entre nós: a preocupação real de proteger o território, de ter a certeza que o território é nosso”, finaliza Jerá.

A trilha

Supi e Awapo’i na trilha para a Serra do Mar (Foto: João Bourroul/Iepé)

Depois da visita à aldeia Kalipety, na TI Tenondé Porã, os quatro Zo’é, acompanhados de cerca de 20 Guarani, desceram a Serra do Mar por dentro da Mata Atlântica, em uma trilha de mata fechada que é rota dos Guarani há pelo menos 300 anos. 

No total, foram 26 quilômetros de caminhada percorridos em cerca de 10 horas. O primeiro trecho é plano e segue a estrada de ferro. A companhia ferroviária aproveitou a picada feita pelos Guarani há muito tempo: a sabedoria indígena indicava que ali era o melhor caminho possível. A imponente presença do trem e sua sinfonia ferrosa  foram a marca da primeira metade da caminhada. Antes de entrar no terceiro túnel, é preciso pegar a direita – aí é que começa de fato a descida da serra do mar em meio à floresta, em um terreno permanentemente íngreme e permanentemente úmido. 

Após oito horas de caminhada, chegamos na beira do Rio Capivari – o último grande rio limpo da cidade de São Paulo – e o acampamento foi montado. Enquanto Tokẽ, Supi,  Awapo’i e o assessor do Iepé, Leonardo Braga, cortavam, fincavam e amarravam pedaços de tronco para a estrutura do acampamento, Se’y e Genésio, vice-cacique da aldeia Tekoa Mirim e um dos Guarani que acompanhou a expedição, tratavam de cuidar do fogo; uma missão quase impossível (aos olhos de um não indígena) por conta da chuva que vinha caindo na floresta há pelo menos três dias.

Tokẽ, Awapo’í e Supi montando o acampamento na beira do Rio Capivari (Foto: João Bourroul/Iepé)

O mar

Se’ y e seu cocar de urubu-rei na Praia dos Pescadores, em Itanhaém (Foto: João Bourroul/Iepé)

Um dia antes de embarcarem de volta para casa, os Zo’é foram para Itanhaém, litoral sul de São Paulo. A última missão: ver o mar pela primeira vez. 

“Hoje eu vi o marzão, é muito bonito, fiquei muito contente. Eu estava com receio porque tem muito vento e muita onda, é bem diferente das águas que conhecemos”, conta Awapo’í. 

Após alguns minutos de precaução, estavam furando onda e pegando jacaré. E rindo, gargalhando como alguém que… vê o mar pela primeira vez. Como resumiu, Supi: “é muito lindo e muito grande. Eu estava com um pouco de receio, mas a água levou o medo embora”.

A visita e as atividades da comitiva Zo’é em São Paulo são parte do trabalho do Programa Zo’é do Iepé e contam com apoio da Fundação Rainforest da Noruega e da Nia Tero.

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