Fortalecimento de fundo de artes e artesanatos marca encontros de mulheres indígenas no Tumucumaque

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Mulheres do oeste do Tumucumaque retomam conversas sobre o fundo de artesanato, seus conhecimentos, artes e territórios. Leia os depoimentos

Texto: Cecília de Santarém | 02/12/2021

De mãos dadas e em passos ritmados, com muitas miçangas e entoando cantos tradicionais, mais de cem mulheres indígenas Tiriyó, Katxuyana, Txikiyana, dentre outras yana (como eles chamam suas gentes e povos), adentraram a grande casa Wëriton Eripowara – Casa das Mulheres, no formato de um ninho de determinado tipo de caba – na retomada de seus encontros regionais ligados à Articulação das Mulheres Indígenas Tiriyó, Katxuyana e Txikiyana (AMITIKATXI).

O último encontro tinha sido realizado em novembro de 2019 com mulheres de todas as aldeias do lado oeste do Tumucumaque. Desde então, as atividades com grande número de pessoas estavam suspensas por conta da pandemia de Covid-19. Com a vacinação e a diminuição significativa da notificação de novos casos, foi possível realizar, neste ano, três encontros menores, de três dias cada. Neles, as mulheres de diferentes regiões do lado oeste do Tumucumaque puderam retomar as bases para o estabelecimento de seu Fundo de Artes e Artesanato Wëriton Iyeripo.

Lurdes Kaxuyana, uma das coordenadoras da AMITIKATXI, realiza fala de abertura do encontro regional na aldeia Missão Tiriyó, ao lado da obra “Itu nai anya arimikane”. (Foto: Cecília de Santarém/Iepé)

No total, participaram cerca de 200 mulheres de todas as faixas etárias em encontros que aconteceram nas aldeias Missão Tiriyó (entre 1 a 3 de novembro), Pedra da Onça (4 a 6 de novembro) e Kusare (7 a 9 de novembro). Estes encontros fazem parte de uma parceria iniciada em 2019 envolvendo a Coordenação Regional da Funai em Macapá (AP), a APITIKATXI e o Iepé, para o fortalecimento das artes com miçangas das mulheres no Tumucumaque.

No âmbito da Funai a iniciativa conta com apoio da CGETno (Coordenação Geral de Etnodesenvolvimento), e no âmbito da APITIKATXI e Iepé, com apoio da Nia Tero e Fundação Rainforest da Noruega. Cecilia de Santarém, do Programa Tumucumaque, do Iepé, e Maria Alice Oliveira, da Coordenação Regional Amapá e Norte do Pará da Funai, assessoram as mulheres no planejamento e durante os encontros realizados.

As mulheres retomaram discussões sobre o funcionamento de seu fundo de artesanato, repactuando o interesse nesse trabalho coletivo e trazendo à tona dúvidas e possibilidades para a execução da iniciativa. Para elas, a retomada de um fundo de artesanato é uma boa maneira de fortalecer seus conhecimentos tradicionais e participação em espaços políticos, assim como uma oportunidade de geração de renda. Neste link, é possível baixar o livro Arte Visual dos Povos Tiriyó e Katxuyana, publicado pelo Iepé em 2009.

O encontro contou com a presença de mulheres de todas as idades, debatendo o fortalecimento de seus conhecimentos tradicionais. (Foto: Cecília de Santarém/Iepé)

Durante aqueles dias, chegaram materiais, como miçangas, linhas, agulhas e fios de algodão. Também em cada uma delas, as mulheres participantes receberam exemplares de seu Protocolo de Consulta e Consentimento, Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), dentre outras publicações, aproveitando o momento para discutir essas importantes ferramentas na luta por seus direitos enquanto povos indígenas.

Na aldeia Pedra da Onça, mulheres analisam e comentam os materiais trazidos para a confecção de peças.  (Foto: Cecília de Santarém/Iepé)
Na aldeia Kusare, Yosita Tiriyó (liderança da aldeia Yawa) faz questão de entregar para sua neta documentos importantes: Protocolo de Consulta e PGTA do Tumucumaque, bem como o mapa de toda a região. Foto: Cecília de Santarém/Iepé

Obra de arte exposta em Londres

Outra pauta importante desses encontros foi a participação da AMITIKATXI na exposição Ka’a Body: Cosmovision of the rainforest, na Galeria Paradise Row, em Londres, a primeira exibição de arte indígena contemporânea brasileira realizada fora do Brasil com curadoria de uma mulher indígena. Essa curadoria é de Sandra Benites, que também é a primeira mulher indígena curadora do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) e Anita Ekman. Também integram a exposição obras de Jaider Esbell, Denilson Baniwa, Kume Assurini, Daiara Tukano, entre outros coletivos e artistas. 

Mitore Cristiana Tiriyó Kaxuyana é articuladora da AMITIKATXI e integrante da diretoria da APITIKATXI, além de tradutora nos encontros realizados na Missão Tiriyó e em Kusare. (Foto: Cecília de Santarém/Iepé)

A peça apresentada pela AMITIKATXI, elaborada com o apoio e articulação de Cecília de Santarém, intitula-se Itu nai anya arimikane. Em uma tradução livre sugerida pela AMITIKATXI, significa “A floresta é o que nos faz crescer/nosso futuro”. A obra consiste numa grande árvore de miçangas, costurada sobre um tecido vermelho. E sua venda irá colaborar com o Instituto Maraka e com a iniciativa Amazônia Alerta, além de integrar o Fundo de Artes e Artesanato Wëriton Iyeripo.

Na aldeia Pedra da Onça, mulheres dançam junto à árvore de miçangas, a obra de arte “Itu nai anya arimikane”.  (Foto: Cecília de Santarém/Iepé)

A seguir, o depoimento da senhora Marëtë Tiriyó, da aldeia Kusare, traduzido por Mitore Cristiana Kaxuyana Tiriyó (APITIKATXI/AMITIKATXI):

“Observamos miçangas em forma de árvore. Mas agora tenho noção de que tem muito mais aí dentro. Não é só árvore, pois traz tudo para gente. Vejo que o que é discutido é realidade. Essa árvore tem que ser fortalecida. Precisamos de continuidade. Fortalecer essa parceria e a união das mulheres. Esse encontro que temos hoje traz uma boa visão sobre nosso território. Achávamos que tudo estava normal na floresta, mas tivemos a informação de que não é bem assim. A nossa terra está demarcada, mas tem gente de olho. Aqui dentro temos arco e flechas, bordunas, abanos, tipiti, madeiras para fazer nossas casas, e muito mais. A gente acha que tudo está quieto, mas agora ouvimos e queremos fortalecer nosso conhecimento para as próximas gerações. Precisamos fortalecer nosso Fundo de Artes, trabalhar para alguns apoios. Podemos trazer parentes para nos dar apoio com as experiências delas. Praticando o que a gente faz, a gente fortalece nosso conhecimento e protege nossa terra. Fortalecer nossos conhecimentos para fortalecer o que queremos em nosso território. Não queremos passar para interesse econômico dos outros, queremos dizer que temos nosso modo de vida. Quero fortalecer e dizer para as outras mulheres que a gente continue.”

“Essa árvore tem que ser fortalecida. Precisamos de continuidade”, disse Marëtë Tiriyó, na aldeia Kusare, para as demais mulheres presentes. (Foto: Cecília de Santarém/Iepé).

Outros depoimentos:

Diva Tiriyó, importante liderança da aldeia Kusare. (Foto: Cecília de Santarém/Iepé)

“A floresta é nossa mãe, ela dá tudo para gente. Não queremos entregá-la de mão beijada para garimpeiros. É na floresta que buscamos alimentos, materiais para nossas habitações, e tem até mesmo sementes que podem trazer renda para a gente. Por isso a floresta é nossa mãe, ela nos dá tudo. Garimpeiros não são bem vindos em nosso território. Até então, não tínhamos esse conhecimento. Esse Fundo de Artes é importante para nós, pois precisamos comprar algumas coisas da cidade, como sandálias e outras coisas.” Diva Tiriyó, aldeia Kusare.

Dejanira Tunayana, da aldeia Aiki, também traz seu depoimento no Encontro das Mulheres da aldeia Kusare. (Foto: Cecília de Santarém/Iepé)

“Dentro dessa floresta, é tudo que a gente tem. Frutas como karamiri, makara, wapu, kumu, kumasiri, entre outras. Floresta é onde a gente encontra tudo o que gostamos e queremos, por isso ela deve ser protegida e fortalecida. É vida que precisa ser respeitada. Tudo isso é importante.” Dejanira Tunayana Tiriyó, aldeia Aiki.

A jovem Tumi Tiriyó, da aldeia Maritëpu, destaca a importância das mulheres lutarem lado a lado com os homens. (Foto: Cecília de Santarém/Iepé)

“É importante estarmos juntas e unidas. Fortalecermos o conhecimento dos antepassados e os conhecimentos de hoje também. Nosso pataentu (dono da aldeia) Turakane ficou sabendo desse encontro e articulou com as mulheres de nossa aldeia. Assim, nós viemos. É a primeira vez que estou participando. Meu marido é quem participava da Formação de Jovens e Lideranças. Essa noite, nós dois conversamos e ele me incentivou. Ele me disse que as mulheres também devem estar à frente, lutando com os homens. Eu nunca tinha pensado nisso, mas meu esposo está sempre me fortalecendo. Nossa luta é única: proteger nossos conhecimentos, nossos territórios, passar para nossos filhos o que sabiam nossos antepassados. Agradeço ao Iepé, que reúne a gente e nos põe para discutir e fortalecer o que estamos passando”. Tumi Tiriyó, aldeia Maritëpu.

Erika Tiriyó e as peças de maramara feitas por ela. Crédito: (Foto: Cecília de Santarém/Iepé)

“Miçangas trazem bem viver e renda. Hoje discutimos sobre nosso Fundo de Artesanato. Nossa contribuição é para as futuras gerações. Pedimos que o Iepé siga trazendo miçangas para continuidade de nossa arte. Não podemos ficar por aqui. Estou também tendo uma renda. Recebi miçangas, fiz artesanatos, meu irmão vendeu em Macapá e comprou coisas que eu queria. Vejo que é bom fortalecermos esse Fundo de Artesanato, pois todas colaboram e poderemos trocar por carrinho de mão, enxada e algumas facilidades para nosso trabalho cotidiano.” Érika Tiriyó, aldeia Kusare.

Raimunda Kaxuyana, liderança feminina da aldeia Orokofa, fala para as demais participantes do encontro sobre a importância de se valorizar seus conhecimentos tradicionais, inclusive fiação de algodão e cerâmica.  Crédito: Cecília de Santarém. Novembro/2021.

Temos que falar sobre cerâmica. É muito importante esse fortalecimento. Eu aprendi com mulheres mais velhas que já faleceram. Preciso repassar, mas não tenho feito essa prática. Preciso de apoio para que as jovens se interessem. Trabalhar com cerâmica faz panela grande, forno, tudo. Precisamos de apoio. Eu sei o processo para fazer o fuso para tecer algodão. Sim, a gente usa cerâmica. O acabamento precisa de caroço de inajá para o trabalho ficar resistente e bem feito. Fortalecer o algodão também. Não é só pegar e fiar. Tem vários processos desde plantar até fazer rede. Tem algodão que precisa ser preparado. Ainda não conseguimos pôr em prática com nossas jovens. Por isso precisamos de apoio e projeto. Raimunda Kaxuyana, aldeia Orokofa Nova.

Foto topo: Abertura do encontro na aldeia Missão Tiriyó: Guadalupe Tiriyó e Lurdes Kaxuyana puxam cantos e danças.   (Foto: Cecília de Santarém/Iepé)

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